Opinião – A invenção mais nefasta de todos os tempos

Se soubermos identificar e entender para onde as coisas estão caminhando, poderemos nos preparar e, melhor ainda, talvez até evitar que algo muito ruim aconteça. Escreve Daniel Lopez

04/11/2022 08:06

”Enquanto o mundo teme a escassez energética e alimentar, o tempo vai se tornando o novo recurso escasso”

Moeda digital da China poderá ter prazo de validade. Foto: Pixabay

No final das contas, há apenas dois projetos de gestão: um que valoriza a liberdade e outro que busca o controle. O problema é que, obviamente, o segundo modelo não se apresenta como tal, mas se mascara atrás de um manto de liberalismo e autonomia. Nada como a boa e velha propaganda.

Nestas colunas, tenho sempre buscado alertar sobre as estranhas e preocupantes mudanças que têm acontecido mundo afora. Ajudar a entender como o mundo está rapidamente se transformando em algo completamente diferente. Faço isso motivado por uma convicção: conhecimento é poder. Estimulado pela ideia de que, se soubermos identificar e entender para onde as coisas estão caminhando, poderemos nos preparar e, melhor ainda, talvez até evitar que algo muito ruim aconteça.

Tenho insistido no alerta sobre o perigo das moedas digitais centralizadas, criadas pelos Bancos Centrais mundo afora. É uma tendência global, que também vem ganhando corpo por aqui, como mostrei em artigo recente. Sem dúvida, a substituição do dinheiro físico pelo digital seria o xeque-mate do poder estatal, garantindo controle pleno sobre todas as atividades humanas, tornando-a completamente dependente da boa vontade do sistema.

Entretanto, como se não pudesse ficar ainda mais estranho, uma novidade está aumentando o nível de preocupações sobre o advento das CBDCs. E eu preciso alertá-los sobre isso. Uma matéria recente publicada no The Economic Times (jornal diário indiano voltado para negócios, de propriedade do The Times Group) divulgou que a China está testando inserir em sua moeda centralizada, o yuan digital, uma data de validade. Ou seja, o valor iria expirar caso não utilizado dentro de um período de tempo. Isso forçaria os usuários a gastar suas reservas com mais rapidez. Os desdobramentos disso são nefastos.

A motivação principal estaria no fato de que, conforme a China enriquece, o consumo interno vai ganhando cada vez mais importância. Dessa maneira, controlando o consumo doméstico (por meio de uma data de validade para o dinheiro), o governo poderia ajustar a demanda por bens e serviços, acelerando ou desacelerando essa dinâmica. O mecanismo poderia também ajudar a controlar a inflação, aumentando ou diminuindo o consumo conforme o caso.

O lado obscuro disso tudo é que a proposta poderia impedir que os cidadãos acumulassem dinheiro, assim, evitando o enriquecimento individual. Um cenário distópico, que me fez lembrar do filme de 2011 O Preço do Amanhã, dirigido por Andrew Niccol e estrelado por Justin Timberlake e Olivia Wilde. Na história, para permanecerem vivas, as pessoas precisavam “comprar minutos de vida”, de forma que, literalmente, o tempo seria o próprio dinheiro. Enquanto os pobres eram forçados a implorar por cada minuto de suas vidas, os ricos acumulavam tanto tempo que tornaram-se capazes de viver para sempre.

Por incrível que pareça, essa ideia de dinheiro com prazo de validade não é nova. O próprio Keynes, famoso economista britânico, sonhava em poder controlar a chamada “velocidade do dinheiro”, ou seja, o número de vezes que uma determinada moeda é gasta para comprar bens e serviços em um período específico. A ideia do dinheiro com data de expiração tem precedentes na Idade Média e até mesmo no Egito Antigo. Entretanto, sua versão moderna foi criada pelo economista alemão-argentino Silvio Gessel, criador do Freiwirtschaft (do alemão “economia livre”), um tipo de modelo econômico de socialismo de mercado.

Em 1887, Gessel mudou-se para a Argentina, e abriu uma franquia de uma empresa de seu irmão. Mas seu negócio foi severamente prejudicado por uma grave crise econômica que aconteceu em 1890. Isso o levou a uma profunda reflexão sobre os problemas do sistema monetário. Ele concluiu que, em momentos de instabilidade, crises se agravam pois as pessoas guardam o dinheiro, praticando o chamado “entesouraremento”, que acaba travando a economia e gera uma destrutiva reação em cadeia. Se o dinheiro tivesse um prazo de validade, pensou ele, as pessoas seriam obrigadas a gastar, o que poderia impedir o entesouramento e evitar o colapso econômico.

A ideia parece muito boa, mas pode conduzir a propostas estranhas como a da moeda digital com data de validade, que pode ser um instrumento para a perpetuação do status quo, impedindo a ascensão social e garantindo controle eterno das elites sobre as massas.

Fica o alerta. Torço para que haja uma ampla conscientização antes que essa proposta seja definitivamente implementada mundo afora.

 

 

 

 

Por Daniel Lopez é jornalista, formado pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É doutor em Linguística (UFF), mestre em Linguística (UERJ), bacharel em Teologia (UMESP) e licenciado em Letras. Tem especialização em Teoria da Arte, Crítica de Arte, Filosofia, Sociologia e Antropologia. Foi professor nas áreas de Filosofia da Educação, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e de Linguística, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É pastor na Igreja Bola de Neve Sede, na cidade de São Paulo, desde 2014. É escritor, tradutor e professor universitário. Mantém o canal no YouTube “Daniel Lopez” e o site www.daniellopez.com.br.