Opinião – Alexandre, bom para o país

Quando se considera a educação superior um fim em si mesmo e um direito de todos, acaba-se num igualitarismo que é contraditório com a própria noção de elite. Escreve Bruna Frascolla

10/11/2022 06:28

”Todo país tem que ter uma elite governante que preze pelos interesses nacionais.”

Busto de Alexandre de Gusmão no Senado Federal do Brasil. Foto: José Cruz/Agência Brasil

Na História, Alexandre é um nome de grande peso. Somos levados a pensar em Alexandre, o Grande, que atravessou a Ásia até chegar à Índia, dando origem a um grande intercâmbio cultural no Ocidente. Esse tipo de façanha só seria superado pelas Grandes Navegações, milênios depois.

E as Grandes Navegações têm o dedo de Portugal, a pátria que deu origem ao Brasil, da qual herdamos as línguas e, até o fim do século XIX, as instituições políticas. Na nossa história também há um grande Alexandre, o de Gusmão. É natural da vila de Santos, São Paulo, e irmão do notório padre voador, Bartolomeu de Gusmão.

Saiu ano passado, pela Record, a terceira edição de “Alexandre de Gusmão (1695-1753): o estadista que desenhou o mapa do Brasil”, do embaixador e professor aposentado Synesio Sampaio Goes Filho. É um livro curto, informativo e aprazível, que vale a pena ser lido por quem queira se inteirar da História do Brasil.

O que aprendemos na escola é que o Tratado de Tordesilhas (1494), que dividia o mundo ao meio e deixava Portugal só com uma pontinha da América do Sul, foi o tratado mais importante para o mapa brasileiro. Depois disso, toda a interiorização do território seria atribuída aos bandeirantes e a fraude de mapas. Isso não é verdade: a acompanharmos a bem fundamentada argumentação do autor, o tratado mais importante é o Tratado de Madri (1750); o Tratado de Tordesilhas não dividia o mundo ao meio, mas só o “Mar Oceano”, depois chamado de Oceano Atlântico; a ação dos bandeirantes e dos gaúchos foi importante, mas só ganhou respaldo graças ao novo princípio introduzido por Madri, o uti possidetis.

As negociações

Alexandre de Gusmão tinha fama de ser um grande conhecedor do Brasil. Assim, era o homem mais indicado para representar os interesses da Coroa portuguesa em suas negociações com a espanhola.

À época, o estado do Brasil exportava toneladas de ouro para Portugal e não tinha fronteiras definidas. Ademais, não havia um único estado português na América; existia também, à parte e sem comunicações, o estado do Maranhão e do Pará. As metas da Coroa portuguesa eram ter o controle da foz dos rios das Amazonas, ao norte, e Prata, ao sul. Por isso, queria manter a Colônia do Sacramento na foz do Prata, local que hoje pertence ao território uruguaio.

O escopo do Tratado de Tordesilhas não abrangia o Oceano Pacífico, recém-descoberto. Lá estavam as Ilhas Molucas, ricas em especiarias, que atraíam a atenção da Espanha. Alexandre de Gusmão sabia que a Colônia do Sacramento vivia sob assédio constante dos espanhóis e que não se integrara às cidades do litoral gaúcho. Ao mesmo tempo, sabia que as terras jesuíticas dos Sete Povos das Missões eram boas e férteis. Assim, propôs trocar a Colônia do Sacramento pelos Sete Povos das Missões e abrir mão da soberania sobre as Ilhas Molucas, atuais Filipinas.

No mais, Alexandre de Gusmão introduziu dois princípios: o uti possidetis e o das fronteiras naturais. Um está ligado ao outro. À época, a cartografia já era, em si mesmo, um trabalho dificílimo. Se fazer um mapa já era difícil, imagine-se o trabalho de demarcar uma longa fronteira na mata virgem usando a linha abstrata de algum meridiano ou paralelo. Impraticável. Assim, as fronteiras deveriam usar coisas fáceis de serem reconhecidas, tais como rios e montes.

Outro marco a ser usado era o dos povoados já existentes. Passaria a valer o princípio do direito romano uti possidetis, ita possieatis, ou “tal como possuís agora, que assim possuas no futuro”. Nada de desfazer vilas já existentes para concretizar futuros acordos. Nesse tópico, entrou aquela dose de malandragem cartográfica, tal como vimos na escola. O mapa oferecido por Alexandre de Gusmão colocava Cuiabá, o Vale do Javari, Belém do Pará, São Luís do Maranhão, Goiás, Vila Bela e o Pantanal muito mais a leste do que a realidade. O Brasil dobrou de tamanho e unificou seu território; mas, pelo mapa, parecia que tinha aumentado só um terço.

Madri prezava muito pela foz do Prata e pelas Ilhas Molucas; por isso, aceitou o acordo. O Centro-Oeste brasileiro fora ocupado pelos bandeirantes à procura de ouro, e a Amazônia por missionários portugueses à procura de catecúmenos. A foz do Prata era tão importante assim para os espanhóis porque era por essa via fluvial que se escoava a prata de Potosí, atual Bolívia. Das margens lusas vinham os contrabandistas. Por outro lado, Portugal escoava o ouro mineiro pelo Rio de Janeiro, que passara a ser capital do Brasil.

Um grande impacto do tratado foi transformar o Brasil numa massa terrestre contígua. O tratado depois foi desfeito por uma Espanha arrependida e engabelada, mas o seu desenho lembra bastante o do Brasil atual: com um grande naco da Amazônia, com o Pantanal e com um Rio Grande do Sul gordinho, sem Uruguai. Isso se deveu à eficácia da implementação do uti possidetis e das fronteiras naturais.

Alexandre de Gusmão é natural de Santos, filho de um português com uma mameluca paulista de provável origem judaica (o assunto renderia pano pra manga quando seu irmão, o Padre Voador, se convertesse ao judaísmo). Em Santos não havia nada; só um porto e um punhado de mamelucos. Era um local pobre e bastante periférico no Reino. À época, a área mais chique e rica do Brasil ainda era a do açúcar, com baianos e pernambucanos vivendo à maneira de nobres feudais. O meio de se progredir na vida era por meio da Igreja; assim, Alexandre de Gusmão, junto com um punhado de irmãos, foi enviado para estudar no seminário da então Vila de Belém, hoje um distrito rural do município em que moro, Cachoeira, Bahia. Tal como o irmão, ele ganha aí o sobrenome “de Gusmão”, dado pelo padre – outro Alexandre de Gusmão – que era amigo da família, talvez parente, e os recebia no seminário. Lá, sua esperteza foi reconhecida como fora do normal, bem como seu temperamento desaforado. Ficou claro que não servia para padre. Por alguns séculos, os portugueses cultivariam a memória de Alexandre de Gusmão por causa de suas cartas desaforadas dirigidas às autoridades.

Foi enviado a Portugal, e lá caiu nas graças de D. Luís da Cunha, um importante diplomata português. Reconheceu nele um pupilo, levou-o consigo para missões importantes e não demorou para que D. João V também gostasse dele. Terminou sucedendo Luís da Cunha e virou Secretário do Rei, uma espécie de faz-tudo real, cheio de poder e responsabilidades. Com a morte do rei, ele foi sucedido por ninguém menos que Pombal, que o detestava. Possíveis consequências disso foram seu empenho em restaurar a maneira como o imposto era cobrado em Minas, bem como desfazer a permuta entre Sacramento e os Sete Povos. As alterações tributárias pombalinas acabaram com a paz em Minas, e o Rio Grande do Sul acabou ficando mais ou menos como está hoje a despeito disso.

Boas elites

O caso de Alexandre de Gusmão mostra bem que nascer pobre e sem berço, no Brasil, não era em si mesmo nenhuma catástrofe. Embora a esmagadora maioria da população fosse analfabeta, havia uma considerável oferta de alfabetização graças à Igreja. A ideia de que todo o mundo tem que ser alfabetizado é que é recente na história da humanidade. Surgiu com a Reforma, que colocava o conhecimento da Bíblia como necessário para ir ao céu. Os católicos achavam que a linguagem bíblica era uma metáfora para que até as velhinhas, simplórias, entendessem como ir para o céu. Elas não precisavam aprender a ler; bastava receberem instruções do padre. Já com a Reforma, criou-se essa demanda irreal de que cada um se tornasse teólogo em seu foro íntimo. É o mal moderno da uniformização. (Antes vimos como a uniformização atinge a conduta sexual feminina; antes todas tinham que ser boas esposas e ninguém podia ser freira ou prostituta; depois, todas têm de ser prostitutas.)

A Reforma acarretou a secularização do governo. Assim, não é de admirar que o projeto da educação, antes considerado pelos protestantes como um meio para alcançar a salvação, viesse a ser considerado um fim em si mesmo, em termos laicos. E de lá para cá só assistimos ao aumento da escolarização como um fim em si mesmo: da alfabetização passou-se ao ensino básico, do básico ao médio, do médio ao ensino superior. Ao cabo, os países ricos têm mais da metade de sua população adulta diplomada e devidamente ideologizada. Eduquemo-nos, sim. Mas sempre tenhamos em mente a pergunta: educação para quê? Para arrumar um bom emprego? Para ser mais competente para lidar com questões práticas? Muito bem. Só não se derive daí uma superioridade perante os ignorantes. Afinal, todos somos ignorantes em vários assuntos; e o ignorante reconhecido como tal com certeza tem um conhecimento prático que lhe dá o seu lugar no mundo. Não é indigno ser um camponês pobre e ignorante; não é digno ser um diplomado rico e “esclarecido” que trabalha conscientemente contra o próprio país.

Quando se considera a educação superior um fim em si mesmo e um direito de todos, acaba-se num igualitarismo que é contraditório com a própria noção de elite. Todo país tem que ter uma elite governante que preze pelos interesses nacionais. E o que eu posso dizer é que o país de analfabetos estava mais bem servido em matéria de Alexandre do que o atual, com as trocentas federais do ministro Haddad.

 

 

 

 

 

Por Bruna Frascolla é doutora em filosofia pela UFBa e autora de “As ideias e o terror” (República AF, 2020). Colabora com a Gazeta do Povo desde 2020.

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