Opinião – Cartilhas do politicamente correto existem desde 2003, o que mudou foi a reação a elas

Seja como for, o fato é que há 19 anos um texto como o de João Ubaldo causava estrago. Hoje, seria coisa de direitista. Escreve Bruna Frascolla

15/12/2022 06:59

“Os fanáticos não chegam a 1% da população, mas detêm um poder completamente desproporcional”

Imagem ilustrativa/ Bigstock

Neste fim de semana, a Gazeta do Povo pôs na manchete a insólita tentativa do Tribunal Superior Eleitoral de acabar com o racismo no mundo por meio da regulação da língua. A medida deve trazer muito alento aos progressistas, já que não precisaram ganhar eleição nenhuma para cumprir essa missão tão importante: basta pegar um tribunal eleitoral (???) e pronto. Está garantido o início de uma Era de Aquário, um mundo melhor onde não se fala mais “teta de nega”, nem “ovelha negra”.

Por outro lado, parte da reação nas redes sociais foi de que o mundo acabou. Agora o TSE vai regular a língua e não há o que fazer além de sentar no meio fio e se esvair em lágrimas, porque se cantarolarmos Rita Lee Xandão vai nos botar na cadeia. A ação do TSE é infame e deve ser no mínimo ridicularizada (ridendo mores castigat) – embora seja difícil fazer piadas com algo que parece, em si mesmo, piada pronta, com verbetes dignos de aparecerem num debate da TV Pirata. É como dizia João Ubaldo Ribeiro em 2005: “Vão tomando um dedinho, a gente deixa, aí tomam a mão, tomam o braço, tomam o tronco e quando a gente (aliás, “gente”, assim como “pessoa”, não devia ser palavra feminina, porque há o risco de ofender homens extremadamente ciosos de sua masculinidade; tentemos empregar, por exemplo, “gento” e “pessôo” ao nos referirmos ao sexo masculino e “genta” ao feminino) se dá conta, já tomaram o corpo todo.”

O problema de parte das reações é a crença na inexorabilidade da mudança. Se tomaram um dedinho, isso só pode significar que em breve tomarão o corpo todo. Por isso é salutar lembrar que João Ubaldo escrevia isso em 2005 porque descobrira ter sido impressa em 2003 a cartilha “Politicamente Correto & Direitos Humanos”.

O Brasil não acabou em 2003

Lula começou seu primeiro mandato presidencial em 2003. No mesmo ano, a então Secretaria dos Direitos Humanos (órgão criado por FHC que passaria por uma série de fusões até se transformar no atual Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos) lançou, discretamente, a cartilha Politicamente Correto & Direitos Humanos. A dita cuja ficou na penumbra até João Ubaldo Ribeiro publicar uma coluna n’O Globo denunciando. O título é “O programa Fala Zero” e pode ser lida no site da ABL.

O conteúdo da cartilha também serviria para um esquete da TV Pirata. Assim, a cartilha logo virou um filho feio sem pai, com todos os envolvidos na secretaria negando que tivessem tido conhecimento do material publicado.

A acompanharmos a matéria da IstoÉ sobre o imbróglio, único homem público a defender a cartilha foi Luiz Mott, para quem “é fundamental que se tente acabar com o uso de expressões pejorativas em relação aos homossexuais, como ‘bicha’, ‘viado’ e ‘fresco’”. Nos dias de hoje, Mott, que é um do contra, reclama de volta e meia ser banido do Facebook por escrever viado.

Comunistas, liderados por Oscar Niemeyer e com o coro engrossado pelo então ministro Aldo Rebelo, ridicularizaram a inclusão da palavra “comunista” na lista negra da cartilha. Tinham orgulho de se dizerem comunistas; mas, segundo constava na cartilha, o termo era “utilizado até recentemente para discriminar ou justificar perseguições a qualquer militante de esquerda ou de causas sociais”. Vai chamar o comunista de quê? A cartilha não diz.

Os responsáveis burocráticos pela cartilha eram o secretário Nilmário Miranda e o sub-secretário Perly Cipriano, dois egressos do comunismo. O primeiro deles se manifestou sobre o assunto e se limitou a defender que a Secretaria poderia criar uma cartilha educativa. No entanto, até Lula reclamou da cartilha, que condenava o uso da palavra “peão”, muito usada pelo presidente.

O único que não pôde recusar a paternidade desse filho desprovido de qualidades estéticas foi o jornalista pago para redigi-la, Antônio Carlos Queiroz. Ciente de todas as queixas, ele disse que Lula deveria ser o primeiro a ler a cartilha. Leiamos a IstoÉ: “Segundo ele, ‘a ideia era fazer um sentido provocador, chamar a atenção sobre a imagem e a dignidade das pessoas diferenciadas, provocar mesmo’, afirma. Queiroz […] rebateu o principal crítico da cartilha: ‘Quem mordeu a isca em primeiro lugar? João Ubaldo Ribeiro, um cara que gosta de alarmar que é conservador, detesta o governo Lula, xinga os ministros de asno e foi contra a demarcação das terras indígenas.’ Pois é. Mas João Ubaldo recebeu um telefonema de Nilmário Miranda. E a cartilha de Queiroz foi parar na gaveta”.

A cartilha ainda pode ser acessada num site retrô de direitos humanos, ligado a uma ONG filiada à ABONG (o sindicato das ONGs). Basta bisbilhotarmos o B, e bestificar-nos-emos com a bestial balançada nas besteiras. É proibido falar “branquelo”, porque “por incrível que pareça, existe no Brasil preconceito racial contra pessoas brancas. Mais fortemente, contra membros das colônias européias no Sul do País. ‘Branquelo’ e ‘branquelo azedo’ são duas das expressões pejorativas contra os brancos”. O preconceito contra religiosos não era exclusividade do candomblé e da umbanda, pois “beata” era um “termo [que] deprecia as mulheres que vão com muita freqüência às missas e ofícios da Igreja Católica”. E os bugres? “Termo depreciativo do indivíduo de origem indígena, tido como selvagem, rude. […] Segundo o dicionário Houaiss, a origem da palavra é o nome que os franceses davam, em 1172, a uma seita religiosa de búlgaros, cujos membros eram considerados ‘heréticos’ e ‘sodomitas’.” Não seria homofobia presumir que há algo de ofensivo em ser acusado de sodomia??

O verbete “bêbado” traz nostalgia: “O dicionário Houaiss registra mais de 80 sinônimos ou termos afins, quase todos pejorativos, para caracterizar os dependentes de álcool. Por ignorância e preconceito, muita gente menospreza e trata as pessoas nessa condição como fracas de caráter, sem levar em conta que o alcoolismo é uma enfermidade crônica, catalogada desde 1967 na Classificação Internacional das Doenças da Organização Mundial da Saúde, de difícil cura e de graves conseqüências psíquicas, fisiológicas e sociais. Os alcoólicos merecem respeito e cuidados médicos e não discriminação”. Em 2003, as drogas ilícitas não eram uma calamidade. Se quisesse falar de dependência, era preciso acudir ao tradicional alcoolismo. Não constam verbetes como “drogado”, “cracudo” ou “viciado”.

Curiosamente, temos “fascista” e “nazista” estavam entre os termos proibidos. Neste último, a explicação era: “O termo refere-se ao adepto da doutrina do nacional-socialismo alemão, uma variação do fascismo, fundada por Adolf Hitler (1889-1945), e base do regime político da Alemanha entre 1933 e 1945, que provocou a Segunda Guerra Mundial. Entretanto, é utilizado preconceituosamente, como ‘fascista’ (ver), para desqualificar os adversários políticos de direita, do mesmo modo como o adjetivo ‘comunista’ (ver) é usado para xingar os adversários de esquerda”. Moral da história: não pode comunista, nem de fascista, nem de nazista. Mas de liberal e neoliberal, pode.

Por fim, vale destacar mais uma minoria oprimida: o “funcionário público”, que é “o trabalhador do Estado, que exerce ou desempenha alguma função pública; serventuário. Depois de sistemáticas campanhas de desprestígio contra o serviço público, iniciadas no governo Collor (1990-1992), para justificar as políticas do Estado Mínimo do modelo neoliberal, os trabalhadores dos órgãos, entidades ou empresas públicas preferem ser chamados de servidores públicos. Com isso, querem enfatizar que servem ao público mais do que ao Estado”.

Faltou esclarecer

Alguns itens da nova lista do TSE constam lá, mas outros que não. Um exemplo é “esclarecer”. O texto de João Ubaldo fez algumas piadas com o politicamente correto (vide pessôo, genta e gento, acima). Uma das piadas era justamente com a ideia de clareza: “E ‘passar pela vida em brancas nuvens’, por exemplo, que tem clara (escura, aliás; por que claro é que é claro e escuro não é claro? – discrimination, discrimination) conotação negativa, ofendendo assim os numerosos arianos brasileiros, dos quais, na Bahia, eu mesmo conheço dois?” Eis que a piada virou realidade.

Será que algum petista diabólico pegou o texto 20 anos depois e resolveu incluir uma piada a fim de limitar o poder da sátira? Impossível, não é, porque a coisa parece ter começado na Bahia. Tem circulado na internet uma “nota de esclarecimento e/ou escurecimento” da Universidade Federal do Recôncavo Baiano, que é de 2013. Em seguida, na minha memória, tem uma professora de Letras da UFBA chamada Lívia Nathália, que em 2016 teve uma polêmica pública com a Associação de Policiais da Bahia. Em meio à polêmica, ela, que é negra, lançou uma “nota de escurecimento”. Na última campanha de Lula, uma locutora falou em “esclarecer ou escurecer” e agora se tenta oficializar essa piada com a presepada do TSE.

Seja como for, o fato é que há 19 anos um texto como o de João Ubaldo causava estrago. Hoje, seria coisa de direitista. Isso quer dizer que a nossa sociedade está cindida, e não há mais possibilidade de diálogo entre fanáticos progressistas e o resto. Os fanáticos não chegam a 1% da população, mas detêm um poder completamente desproporcional.

 

 

 

 

 

Por Bruna Frascolla é doutora em filosofia pela UFBa e autora de “As ideias e o terror” (República AF, 2020). Colabora com a Gazeta do Povo desde 2020.

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