Opinião – O livre mercado não é fim em si mesmo

Quem propõe intervenção estatal o faz em nome de um ideal. No caso em tela, aliviar os custos que desabaram sobre os restaurantes e aumentar os ganhos dos entregadores. Escreve Bruna Frascolla

07/03/2023 16:18

“Quem propõe o mercado totalmente desregulado tem em vista qual finalidade?”

Foto: Estela Neto / Wikimedia Commons

A nossa época, mui científica e racional, anda arranjando umas coisas estranhas para adorar – talvez porque, em sua sanha por objetividade, não saiba mais diferenciar meio e fim. A penicilina, por exemplo, é um importante meio para a saúde. A saúde é o fim e a penicilina é o meio. Imaginem, porém, que os “especialistas” pinçados pela TV tenham criado o Templo da Penicilina, ao qual todo cidadão de bem deve comparecer uma vez por mês, prostrar-se com a bunda voltada para cima e, uma vez prostrado, levar uma injeção de penicilina lá atrás. Nesse caso, a penicilina teria virado um fim em si mesma. E quando o fim passou a ser a penicilina, a saúde deixou de ser um fim. Os cientistas sérios diriam que tomar penicilina todo mês faz mal, mas eles nunca estariam entre os especialistas pinçados pela TV. Doravante, quem não fosse para o Templo da Penicilina se prostrar com as nádegas para o alto seria mau cidadão e deveria ser reprimido pelo Estado.

Longe de acontecer somente com a saúde, o mal adentra a política e a economia. Na política, aprendemos que a democracia é um fim em si mesma, de modo que vale acabar com as mais velhas liberdades individuais a fim de mantê-la. A democracia era um meio para garantir a liberdade. Agora, como em 64, é um fim em si mesma, às expensas da liberdade.

O mercado também é um excelente meio para promover a prosperidade. No entanto, lendo esta matéria e acompanhando a querela dos aplicativos, pude concluir que o mercado foi alçado à condição de fim em si mesmo, às expensas da prosperidade.

O surgimento da querela

A querela dos aplicativos ressurgiu após a declaração surrealista de um ministro de Lula, segundo o qual, se a empresa Uber saísse do país, o serviço poderia ser substituído pelos Correios. De declaração tão tola dificilmente sairia debate que prestasse. No entanto, a reação mostrou bem qual é o novo senso comum em vigência no Brasil: o mercado é tão bom, mas tão bom, que ninguém vai achar absurdo uma empresa lacradora do Vale do Silício, com finanças obscuras, atuar no Brasil sem respeito a qualquer tipo de regulação e sem sequer pagar impostos. Leis duras para os brasileiros, ausência de leis para a gigante deficitária estrangeira. Isso sem nem mencionar o impacto que o Uber teve sobre o financiamento do transporte urbano e o tráfego nas grandes cidades.

A solução pública para a locomoção urbana chama-se transporte público. Por isso é natural que o Estado, quanto mais no plano federal, não tenha pensado numa substituição estatal para o serviço. No plano municipal, há os táxis – os primeiros a reclamar do Uber. Sendo caros, garantia-se que ao mesmo tempo que o serviço não lotasse as ruas de carros e que o trabalhador tivesse ganhos suficientes para bancar a sua família.

Esse não é o caso dos aplicativos de entrega de comida. Durante a pandemia, o setor de restaurantes foi duplamente afetado: primeiro, os clientes não podiam comparecer aos locais; segundo, surgiu uma nova taxa, a dos aplicativos. Como mostrou esta matéria da Gazeta de 2021, eram os restaurantes que arcavam sozinhos com os custos dos cupons de descontos ofertados pelos aplicativos; ainda por cima, as taxas abocanhavam cerca de 30% das rendas dos negócios. É como se a pandemia tivesse criado um gordo imposto privado. Essa na certa é uma das razões de a pandemia ter criado uma brutal desigualdade econômica: tirou de uma multidão de empresários pequenos e médios e transferiu para uma meia dúzia de start-ups.

Livre concorrência?

Em tese, a livre concorrência deveria criar muitos aplicativos de restaurante, ofertando taxas menores aos donos dos restaurantes. Mas desde o ensino fundamental as pessoas escolarizadas deveriam saber da existência – e da criminalização – de uma coisa chamada cartel. Não é a coisa mais fácil do mundo criar um aplicativo. Mesmo que fosse, o fato é que as taxas continuam altas, e não é razoável esperar que todos os restaurantes quebrem enquanto o setor de aplicativos se aprimora.

Felizmente, os políticos ainda precisam de votos para se eleger. Assim, Eduardo Paes, no Rio de Janeiro, criou o aplicativo Valeu. Seria sem fins lucrativos e visaria manter a saúde financeira tanto dos restaurantes quanto dos entregadores. O cidadão paga uma grossa carga tributária, não parece má ideia destiná-la à criação de um agenciamento público de mão de obra. Agenciamento público é tão velho quanto andar pra frente; minha avó contratava doméstica em Salvador telefonando (apertando os botões do aparelho fixo) para uma agência estatal onde as diaristas e empregadas haviam se cadastrado à procura de um emprego.

Mas, segundo descobri esta semana, isso era uma abominável violação contra o livre mercado. Vai ver é porque não tinham inventado os aplicativos ainda…

Depois de criado o aplicativo, um zelote do livre mercado entrou em cena, o vereador Pedro Duarte, do Novo, judicializou e barrou esse projeto criado com o dinheiro dos impostos. Teve mais de uma vitória judicial. Numa delas, a juíza disse que a estatal agia contra a livre concorrência. À Gazeta, o vereador disse que “não cabe ao Estado sufocar o privado e depois inventar de fazer o papel dele.”

Para o vereador, o privadão pode sufocar os privadinhos, e estes não podem ter o dinheiro dos seus impostos a serviço do combate a monopólios. Se o aplicativo da prefeitura entrasse em funcionamento, seria um concorrente a mais. Se servisse para abaixar as taxas e virasse um elefante branco depois, já teria cumprido o seu papel.

A profecia autorrealizável da ineficiência

A ideia visível na matéria, e bem presente no senso comum, é a de que os aplicativos estatais são ruins porque o Estado é intrinsecamente ineficiente. Devo frisar que isso só virou senso comum após o PT destruir as estatais. Os Correios eram uma instituição muito respeitada e exemplar. As próprias universidades públicas eram muito superiores ao escolão ideológico que se tornaram após o governo do PT. Na época da ditadura, a escola pública era de excelente qualidade, embora pequena. Com certeza o serviço público foi muito melhor do que é hoje; e, no caso da educação, o mercado não soube oferecer nada que chegasse à qualidade do ensino público em seu auge.

A experiência passada mostra que o Estado não é necessariamente ineficiente. Se o Estado funciona mal hoje, daí devemos concluir que o funcionalismo precisa de uma profunda reforma – e não que tudo deve passar à iniciativa privada. É certo, porém, que os monopolistas têm todo o interesse na profecia do fim dos sistemas públicos. Acabemos com as escolas públicas e, pelo andar da carruagem, nossos impostos serão destinados à rede básica de Lemann. Acabamos com a reputação das federais, e os nossos impostos vão para o subsídio de fábricas de diplomas do capital transnacional. Eu até penso que o sistema de vales públicos para escolas é uma boa ideia desde que vá para pequenas e médias escolas e não forme ou alimente monopólios. Não vejo essa ressalva feita por nenhum defensor do “livre mercado”. Esse monte de “conservador liberal” que se sente o campeão das virtudes por ser contra o Estado quer jogar as crianças brasileiras no colo das corporações ESG.

A quem serve o Estado hoje?

Hoje existem corporações com mais dinheiro do que muito Estado, inclusive o brasileiro. Assim, é natural supor que as corporações muito mais ricas que a nossa humilde Odebrecht queiram comprar o Estado.

O Rio de Janeiro não é conhecido pela honestidade dos seus políticos. A cidade tem uma espécie de Bolsa Família municipal chamado Família Carioca. Ainda em 2021, Paes tornou obrigatória a exibição do comprovante de vacina para a covid para receber esse auxílio destinado às famílias carentes. A eficácia e a segurança de tais vacinas ficaram muito aquém das promessas feitas à época. Elas também estão longe de serem baratinhas. Assim, o Estado arrecadou dinheiro dos cariocas – ricos, remediados e pobres – para dar à Big Pharma.

Como Paes ainda tem que disputar eleições, ele fez um aceno aos restaurantes e entregadores. Mas o judiciário e o Novo acabaram logo com a brincadeira e, em nome do livre mercado, defenderam os interesses do iFood, que desde agosto do ano passado pertence inteiramente a uma gigante transnacional (a Prosus, propriedade da Naspers).

Quando há corrupção, usam isso como prova de que o Estado não presta. Ora, se não houvesse Estado, apenas seria desnecessário corrompê-lo. As empresas inescrupulosas poderiam impor suas vontades à bala, como fazem as milícias e o tráfico.

Quem propõe intervenção estatal o faz em nome de um ideal. No caso em tela, aliviar os custos que desabaram sobre os restaurantes e aumentar os ganhos dos entregadores. Quem propõe o mercado totalmente desregulado tem em vista qual finalidade? Livre mercado não é fim em si mesmo.

 

 

 

 

 

Por Bruna Frascolla é doutora em filosofia pela UFBa e autora de “As ideias e o terror” (República AF, 2020). Colabora com a Gazeta do Povo desde 2020.

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