Temos o direito de sonhar sonhos heroicos novamente, não com heróis de verdade, mas com pessoas que pelo menos participem do debate público sobre políticas públicas com seriedade e respeito mútuo. Escreve Sergio Moro.
15/05/2023 10:15
“O momento atual do governo Lula deixa nosso país do avesso e a moralidade invertida.”
Os filmes popularizaram os heróis em quadrinhos da Marvel, editora norte-americana de gibis, atualmente um multiconglomerado de mídia. Homem-Aranha, Thor, Hulk e até mesmo o grupo por ela criado para copiar a Liga da Justiça, da DC Comics, os Vingadores, tornaram-se conhecidos mesmo daqueles que não gostam de histórias em quadrinhos.
Para os que acompanham os quadrinhos e não só os filmes, os Vingadores viveram um período sombrio nas revistas, quando os heróis foram substituídos por vilões. Em vez de Tony Stark, como o Homem de Ferro, havia Norman Osborn, o Duende Verde, utilizando uma armadura e se autodenominando o Patriota de Ferro. Osborn é o inimigo número um do Homem-Aranha e foi o responsável, nos quadrinhos, pelo assassinato da namorada do amigo da vizinhança. Durante essa série nos quadrinhos, eram os “Vingadores sombrios” (Dark Avengers) que dominavam. Como ocorre no mundo da fantasia, logo os heróis originais voltaram e os Vingadores retomaram a sua trajetória para o bem.
Na última terça-feira, ouvimos na Comissão de Segurança do Senado o ministro Flávio Dino sobre as políticas de justiça e segurança da pasta. Infelizmente, o ministro deixou de responder várias das perguntas que lhe foram colocadas pelos senadores. Pontualmente, respondeu gratuitamente com deboche e ofensas às questões que lhe foram colocadas.
O que chamou atenção da imprensa e das redes sociais foi sua resposta ao senador Marcos do Val, ao afirmar algo como “se o senador é da Swat, eu sou um Vingador”. É até uma boa tirada para repercutir positivamente na militância político-partidária e nas redes sociais, mas não se trata de uma resposta digna de uma audiência pública no Senado e de um debate que se pretende sério. Admita-se que o senador do Val havia se excedido no questionamento, mas o nível da resposta do ministro colocou o debate abaixo do nível de uma discussão entre alunos do ensino fundamental.
Na minha rodada de perguntas, formulei três questões técnicas que o ministro tratou com deboche ao caracterizá-las como “perguntas esquisitas”. Ora, perguntei basicamente a ele: quais projetos de lei o ministério já havia encaminhado ao Congresso na área de justiça e segurança? Qual o motivo da retomada do Pronasci na área de segurança, já que este programa, executado entre 2007 a 2011, foi marcado por sua ineficácia e por desvios, tendo sido descontinuado pelo próprio governo anterior do PT? Questionei, por fim, se ele não entendia que o PL 2.630, dito “das Fake News”, não tinha falhas evidentes e a opinião dele, bem como se a atitude do governo contra o Google e o Telegram não soavam autoritárias e cerceavam o debate. Perguntas duras, mas normais e sérias para um debate político. Não tive, porém, a resposta, e o ministro ainda aproveitou a ocasião para atacar meu trabalho como juiz.
Enfim, paciência, perde o debate público. Uma coisa ficou clara para mim: O Ministério da Justiça não tem atualmente qualquer projeto próprio para justiça e segurança pública. Nem um único projeto de lei foi encaminhado pelo atual Ministério da Justiça ao Congresso, refletindo a falta geral de projetos do governo Lula. Qual a estratégia para reduzir os crimes? Nenhuma, aparentemente.
Nem tudo depende do governo, ainda bem. Dias atrás, aprovamos na Comissão de Constituição e Justiça, por unanimidade, o PL 1.307/2023, que criminaliza o planejamento de atentados contra agentes da lei pelas organizações criminosas e institui medidas de proteção para juízes, promotores e policiais ameaçados por retaliação pelo mundo do crime. Na anterior, aprovamos, na Comissão de Segurança do Senado, o PL 1.496/2021, que amplia o Banco Nacional de Perfis Genéticos, instrumento poderoso para a elucidação de crimes graves. Nesta semana, apresentaremos dois outros projetos de lei importantes para ampliar o confisco de bens de traficantes de drogas e para prevenir escândalos financeiros como os ocorridos recentemente em relação às Lojas Americanas. Além de fazer oposição ao governo, pelo menos aos eventuais projetos ruins, tentamos avançar com pautas propositivas no espaço que é possível.
Mas a participação do ministro da Justiça na audiência pública no Senado não foi de todo negativa. Serviu-me para lembrar os Vingadores sombrios da Marvel e para fazer a comparação constante neste artigo. Não, não digo que o ministro é um vilão de revista em quadrinho. Não gosto, como ele, de fazer ataques pessoais e prefiro pensar apenas que é alguém bem intencionado, ainda que profundamente equivocado em relação às políticas públicas que defende. Mas é inegável que o momento atual do governo Lula, com os retrocessos que propõe, como os ataques à Lei da Estatais e ao Marco do Saneamento, o alinhamento ao discurso da Rússia na guerra contra a Ucrânia, a condescendência com os regimes autoritários da Venezuela, Nicarágua e Cuba, a tentativa desabrida de censurar as redes sociais e o pensamento divergente, e o esforço de deslegitimação do combate à corrupção, deixa nosso país do avesso e a moralidade invertida. De certa forma, lembra o mundo dos Vingadores sombrios, no qual os heróis foram substituídos por vilões e toda imoralidade era aceita como normal. Lembrei-me também de Isaías 59,14, pois o Brasil vive um momento no qual a “justiça foi posta de lado e o direito foi afastado”.
Precisamos retomar o caminho correto, da democracia e do respeito ao outro, sem abdicar da busca da verdade e da justiça. Que possamos abandonar o espírito vingador sem malícia contra ninguém e com caridade para todos, para lembrar as palavras de um grande estadista. Temos o direito de sonhar sonhos heroicos novamente, não com heróis de verdade, mas com pessoas que pelo menos participem do debate público sobre políticas públicas com seriedade e respeito mútuo.
Por Sergio Moro é senador da República e professor universitário. Atuou como juiz da Operação Lava Jato, a maior investigação contra a corrupção já realizada e foi ministro da Justiça, quando combateu o crime organizado e a criminalidade violenta. É autor do livro “Contra o sistema da corrupção”.