Opinião – As arapucas da reforma tributária: os riscos da centralização excessiva

O texto da chamada “Reforma Tributária” (…) altera totalmente a configuração do Estado brasileiro e de sua arrecadação e gestão financeira. Escreve Sarah Zapelini Martins.

13/07/2023 10:01

“é o desavergonhado toma-lá-dá-cá a que os nossos mais cínicos parlamentares estão se submetendo, sem o menor pejo, para votar a favor do governo”

Reforma tributária, aprovada pela Câmara, também recebeu ressalvas do mercado. Foto: Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados

A efervescência em torno da discussão sobre a PEC 45 nos obriga a dizer, em alto e bom som, o que o governo petista certamente não gostaria que fosse alardeado: que certas medidas previstas flertam, sem exagero, com os ditames de uma centralizadora e estéril economia comunista.

Na prática, se a proposta for aprovada também pelo Senado e sancionada, haverá muita concentração do poder de tributar e isentar – em Brasília, sob o comando de quem o partido governante bem entender. Além disso, quem mais trabalha e gera riqueza no Brasil pode ter que pagar ainda mais impostos, e setores fundamentais para a nossa economia ou que mereceriam ser estimulados – como o agro e a indústria de reciclagem do lixo – deverão ser sobretaxados.

Segundo dados do último censo do IBGE de 2022, quase metade do Produto Interno Bruto do país foi gerado por 71 municípios. Dos 5.568 municípios do país, estima-se que apenas 100 possuam receita significativa advinda do recolhimento do atual Imposto Sobre Serviços – ISS. O restante dos municípios sobrevive basicamente da receita advinda do Imposto Predial e Territorial Urbano – IPTU, e a forma de incidência e arrecadação deste tributo está próximo de sofrer enorme alteração.

O texto da chamada “Reforma Tributária” votado na Câmara dos Deputados altera totalmente a configuração do Estado brasileiro e de sua arrecadação e gestão financeira. Isso é muito mais que uma reforma tributária: é a mais completa alteração da forma atual de arrecadação e gestão de dinheiro público feita desde a fundação da República.

O IPTU passará a ser majorado por decreto municipal, sem participação do legislativo municipal, retirando grande poder de decisão dos vereadores. A arrecadação do IPTU, por sua vez, será gerida por um super Conselho Federativo que é quem terá a real legitimidade ativa da exigência tributária e de toda a administração tributária deste tributo e dos novos tributos a serem implementados. Na prática, deslocou-se a destinação de recursos ao governo federal. Já na saída, haverá desvinculação de 30% das receitas municipais a Brasília.

A reforma, que ainda depende de aprovação no Senado Federal, pretende substituir cinco tributos (ICMS, ISS, IPI, PIS e COFINS) por três tributos (Contribuição sobre Bens e Serviços — CBS, Imposto sobre Bens e Serviços — IBS e Imposto Seletivo — IS), com a promessa de simplificar e atualizar o caótico sistema tributário brasileiro, mas a expectativa é de que na prática, a já alta carga tributária seja ainda mais majorada.

Um dos setores mais impactados seria o ambiental, visto que a reciclagem de lixo seria negativamente ampliada, para citar apenas um exemplo. O impacto será tão significativo que especialistas já preveem o desestímulo ao setor. A venda de insumos reciclados passará a ser tributada integralmente pelos novos tributos (IBS e CBS), a uma alíquota que vem sendo estimada (ainda não é oficial) de aproximadamente 25%. Mas, espera aí, o que houve com todo o discurso ambientalista deste governo e da esquerda em geral? Era só mais uma das muitas hipocrisias que a caracterizam?

Outro setor afetado será o agronegócio, apesar da promessa de redução de alíquota do setor. Citamos como exemplo o aumento de carga tributária para o setor de serviços agropecuários: caso o prestador esteja fora do Simples Nacional, pagando atualmente a alíquota máxima de 5% no ISS municipal, com a reforma passará a pagar 50% da alíquota estimada do IBS de 25%, ou seja, 12,5%.

Um produtor rural com faturamento bruto anual acima de R$ 2 milhões, e que atualmente tem a tributação de ICMS diferida, e não paga o imposto estadual na saída, passará a pagar 50% da alíquota estimada de 25% do IBS, ou seja, 12,5%. Isso, sem falar na ideia de sobretaxar os defensivos agrícolas (pejorativamente alcunhados “agrotóxicos”), o que fatalmente tornará a nossa comida mais cara. O aumento da tributação sobre o setor produtivo do agronegócio trará aumento significativo no valor dos alimentos, mesmo com a prometida redução de alíquota da cesta básica.

O texto também determina a criação de um imposto seletivo federal que incidirá sobre produtos prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, e neste conceito, a produção de proteína animal (carne bovina, por exemplo) será facilmente enquadrada como “prejudicial ao meio ambiente”, aumentando seu valor final. Como se já não fosse o bastante, fala-se, ainda, em “devolução” de impostos com base em critérios de “renda, gênero ou raça”… Mas onde foi parar o princípio constitucional da isonomia, da igualdade de todos os cidadãos perante a lei?

A regra de transição do sistema atual para o novo modelo levará oito anos. Isso significa que durante todo este tempo o contribuinte terá de manter suas atuais escriturações (federal, estadual e municipal), e mais dois no sistema do IVA dual (um do IBS subnacional e um do CBS federal), bem como uma outra escrituração para o novo imposto seletivo federal. Isso sem contar os casos de empresas que também terão que continuar fazendo a escrituração do Simples Nacional caso nele permaneçam. Tal cenário trará grande insegurança jurídica (mais?) ao setor, além do aumento nos custos nos setores contábeis das empresas.

O Simples Federal, importante conquista do pequeno empresário, não foi previsto, e não se sabe como será regulamentado, lembrando que a maioria das empresas brasileiras está enquadrada nesta forma de tributação. O imposto sobre a herança (ITCMD) também sofrerá grande aumento, através de alíquotas progressivas a incidirem sobre o patrimônio a ser inventariado, quase dobrando a atual alíquota. É isso mesmo: o governo se acha no “direito” de simplesmente abocanhar uma parte do que você labutou e ralou para deixar para os seus filhos!

Em resumo, a União passará a centralizar a administração tributária, criando, fiscalizando e arrecadando tributos, diminuindo a participação de estados e municípios anteriormente prevista na Constituição Federal, ferindo o pacto federativo e tornando as figuras dos prefeitos e governadores como meros coadjuvantes do governo federal.

Não se pode impor uma mudança tão drástica no sistema político e financeiro da nação sem a mínima discussão. A efetiva ampliação da carga tributária trará grande impacto na produção de riquezas do país e poderá gerar grave desemprego e aumento do custo de vida. A tramitação da reforma deve-se dar com ampla discussão e participação da sociedade civil, o que não foi feito na aprovação preliminar do texto na Câmara dos Deputados.

Preocupante, ademais, é o desavergonhado toma-lá-dá-cá a que os nossos mais cínicos parlamentares estão se submetendo, sem o menor pejo, para votar a favor do governo, aproveitando-se da longa tradição “mensaleira” do partido na situação. E pensar que havia quem contava, no final das eleições, com a “ferrenha oposição” que um parlamento “majoritariamente conservador” faria às pretensões socialistas do PT… Pobre gente ingênua…

 

 

 

 

Por Sarah Zapelini Martins é advogada tributarista e pós-graduada em Direito Tributário.

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