Putin foi capaz de reconstruir o império soviético em pouco tempo, tornando-se um temido tirano com um aparato estatal poderoso para impor suas vontades. Escreve Rodrigo Constantino.
19/07/2023 08:25
“O sonho de uma Rússia democrata e livre durou pouco”
Garry Kasparov é conhecido por ser um dos maiores jogadores de xadrez da história. Mas ele também é um grande ativista liberal e crítico de Putin. Com a guerra na Ucrânia, o mundo acordou para os riscos da ditadura russa, e Kasparov alerta para esse perigo faz tempo.
Em seu livro Winter is Coming, ele argumenta que o Ocidente precisa agir de maneira mais firme para frear o ímpeto imperialista de Putin. O livro conta a história de como Vladimir Putin, com a indiferença e, em alguns casos, o apoio do mundo livre que derrubou a União Soviética, pôs fim ao experimento democrático na Rússia.
Acompanhar esse processo, que em apenas oito anos saiu da euforia pós queda da URSS para a desilusão da volta da tirania por um ex-agente da KGB, é fundamental para compreender como ditaduras se instalam. Eis um trecho do relato de Kasparov:
Diante de um mar de bandeiras da oposição se unindo contra a corrupção e contra Putin, quem não poderia sonhar com um novo futuro? Mas o ímpeto não pôde ser mantido. Novas leis draconianas contra a liberdade de manifestação foram rapidamente aprovadas, permitindo multas pesadas e criminalizando o protesto não violento. Muitos líderes e membros da oposição foram perseguidos, presos e interrogados sobre seus papéis na organização dos protestos. O Kremlin comprometeu recursos maciços contra os protestos; a última manifestação de massa em 6 de maio de 2013 foi brutalmente dispersada e levou ao chamado caso da Praça Bolotnaya, que os registros mostram que envolveu mais de treze mil entrevistas com testemunhas e que levou dezenas de manifestantes a serem condenados a anos de prisão.
Ao mesmo tempo, a mídia controlada pelo Kremlin começou a intensificar seu retrato dos manifestantes e líderes da oposição como extremistas perigosos e possivelmente traidores da pátria. […] Ainda houve alguns protestos significativos após o anúncio da chamada eleição de Putin, mas ficou claro para mim em 2012 que a democracia estava realmente morta na Rússia. Depois de ter sido chamado várias vezes para uma das entrevistas especiais do promotor – você entra como testemunha e sai como suspeito, se é que sai – decidi não voltar para a Rússia em 2013.
As nações ocidentais colaboraram de forma unânime com este duvidoso encobrimento [da ditadura de Putin]. É notável a rapidez com que até mesmo muitos dos mais radicais na Guerra Fria estavam dispostos a perdoar e esquecer assim que a URSS deixou de existir. “Caça às bruxas” implica perseguição com falsos pretextos e/ou falta de provas. Mas e se houver muitas bruxas reais por aí e muitas evidências de bruxaria? Não se esqueça que o mausoléu de Lenin no meio da Praça Vermelha nunca foi removido.
Foi um processo lento e constante. Vez após vez, os Estados Unidos e a Europa fecharam os olhos para os crimes e contravenções de Gorbachev, Yeltsin e Putin, na esperança de que tudo funcionasse por conta própria. Os presidentes dos EUA, em particular, sempre depositaram muita fé em indivíduos na Rússia, em vez de apoiar as reformas estruturais e institucionais que poderiam ter garantido a sobrevivência da democracia.
Putin não é um ideólogo. Ele e seus comparsas acumularam uma enorme riqueza, e a ameaça de não poder desfrutá-la livremente no Ocidente teria sido uma ameaça muito séria. Os oligarcas de Putin viajam pelo mundo e mantêm sua riqueza no exterior, e isso dá aos governos ocidentais uma influência real se tiverem a coragem de usá-la.
Como qualquer autocrata nato, Putin respeita apenas o poder. Ele dá um passo, olha em volta, cheira o ar e, se não houver consequências negativas, dá outro passo. A cada avanço, ele ganha mais confiança e fica mais difícil de parar. […] Era mais fácil para muitos líderes ocidentais fingir que não havia um problema na Rússia do que admitir que seria difícil ou impossível resolvê-lo.
Apesar da tentativa de renomear o método como “engajamento”, o cheiro de apaziguamento é impossível de mascarar. A lição fundamental de Chamberlain e Daladier indo ver Hitler em Munique em 1938 é válida hoje: dar a um ditador o que ele quer nunca o impede de querer mais; isso o convence de que você não é forte o suficiente para impedi-lo de pegar o que ele quer.
A rápida subjugação da imprensa russa pelo Kremlin foi, juntamente com um aumento nos preços do petróleo de mais de 700 por cento até 2008, a maior razão por trás do sucesso percebido do regime de Vladimir Putin. […] Os meios de comunicação foram tomados por forças amigas de Putin e seus associados mais próximos. O proprietário da NTV, Vladimir Gusinsky, passou três dias na prisão em junho de 2000 e foi forçado a desistir de sua empresa. Na verdade, no que se tornaria um típico “método de negociação” da época, ele foi forçado a assinar a venda de sua empresa antes de poder deixar a prisão.
Essa “censura branda” foi acompanhada pelo tipo mais convencional, com suas listas de nomes não gratos e tópicos proibidos. O poder da mídia foi centralizado da mesma forma que o poder político, e com o mesmo objetivo: saquear o país sem provocar uma revolta popular.
Em suma, com a complacência das lideranças ocidentais, com o domínio completo da imprensa e com a intimidação e perseguição aos seus críticos, Putin foi capaz de reconstruir o império soviético em pouco tempo, tornando-se um temido tirano com um aparato estatal poderoso para impor suas vontades. O sonho de uma Rússia democrata e livre durou pouco.
Por Rodrigo Constantino, Economista pela PUC com MBA de Finanças pelo IBMEC, trabalhou por vários anos no mercado financeiro. É autor de vários livros, entre eles o best-seller “Esquerda Caviar” e a coletânea “Contra a maré vermelha”. Contribuiu para veículos como Veja.com, jornal O Globo e Gazeta do Povo. Preside o Conselho Deliberativo do Instituto Liberal.