Opinião – Esquerdas e direitas, os plurais necessários

A complexidade e a pluralidade marcam as reflexões políticas, econômicas e sociais ao longo da história da humanidade. Escreve Aldemario Araujo Castro.

 

19/07/2023 06:01

“As posições de centro buscam construir um equilíbrio entre os campos das esquerdas e das direitas”

O uso político dos termos “esquerda” e “direita” tem origem, conforme entendimento generalizado, na Revolução Francesa de 1789. Naquele momento histórico, os integrantes da Assembleia Nacional se dividiram em três blocos distintos. Os membros que defendiam a manutenção do Antigo Regime (com o fim da revolução e a permanência do sistema de privilégios) sentavam-se à direita do presidente da Assembleia. Já os membros que defendiam mudanças sociais e políticas (com um governo democrático no qual todos os homens tinham direito a voto) sentavam-se à esquerda. No centro, ficavam os que defendiam uma monarquia constitucional com o poder do rei limitado por leis.

Essa divisão política, baseada na posição geográfica dos membros da Assembleia Nacional francesa, foi adotada por outros países europeus ao longo do século XIX. Naquela época, a identidade política de alguém era frequentemente associada à sua posição social e econômica. Os partidos políticos que defendiam as elites e a aristocracia geralmente eram considerados “de direita”. Os partidos que defendiam os trabalhadores e as classes populares eram considerados “de esquerda”.

Com o passar do tempo, os termos “esquerda” e “direita” ficaram cada vez mais complexos e abrangentes. Atualmente, são usados para descrever uma ampla variedade de posições políticas e ideológicas. As dificuldades são tantas para diferenciar “esquerda” e “direita” que não são poucos os que indagam se ainda é válido ou útil utilizar essa diferenciação.

Provavelmente, a maior dificuldade relacionada com essa intrincada questão é que não existe a esquerda (no singular). Também não existe a direita (no singular). É viável falar, no singular, em campo da esquerda. Trata-se de um espectro político onde estão localizados inúmeros partidos, grupos, movimentos e pensadores. O traço comum gravita em torno da ideia de prevalência da justiça social (foco no nós, no coletivo). No mesmo sentido, é possível falar em campo da direita. Esse segmento também conta com várias agremiações, partidárias ou não, movimentos e personalidades. As mais variadas nuances da direita possuem como denominador comum a ideia de proeminência da livre iniciativa econômica (foco no eu, no individual).

Existe uma abordagem com muita força teórica que advoga a precedência entre os valores igualdade e liberdade como critério distintivo entre as esquerdas e as direitas. Assim, as esquerdas entendem e atuam politicamente dando prioridade à redução das desigualdades no sentido da realização da máxima igualdade (social). Em sentido inverso, as direitas concebem e agem priorizando politicamente a maximização das liberdades, notadamente as relacionadas com a propriedade, manifestação de expressão e escolhas individuais, mesmo envolvendo uma certa desconsideração da coletividade.

Norberto Bobbio, no conhecido livro “Direita e Esquerda. Razões e significados de uma distinção política”, adotou, ao seu modo, esse último critério. Afirmou o ilustre intelectual: “Uma política igualitária caracteriza-se pela tendência a remover os obstáculos (para retomar uma expressão contida no já mencionado Artigo 3 da Constituição Italiana) que tornam os homens e as mulheres menos iguais. Uma das mais convincentes provas histórias da tese até aqui defendida, segundo a qual o igualitarismo é a característica distintiva da esquerda, …”. É sempre conveniente explicitar, para evitar confusões rasas, que a igualdade (ou superação das desigualdades) que se cogita está posta no plano socioeconômico. A utopia máxima da igualdade social daquele famoso barbudo e vários anarquistas parte da implacável realidade da desigualdade pessoal: “de cada um segundo suas possibilidades, a cada um segundo suas necessidades”.

Creio que a mais importante divisão no campo das esquerdas separa as vertentes capitalistas das anticapitalistas. No primeiro bloco, estão aqueles preocupados com políticas de cunho social e a construção de um Estado/sociedade de bem-estar nos marcos da sociedade capitalista. De uma forma geral, a atual social-democracia europeia está solidamente inserida nesta subdivisão (depois de abandonar suas posições originais). De alguma maneira, com imensas dificuldades e ressalvas, também os democratas norte-americanos, ou parte significativa deles, podem ser incluídos nas esquerdas capitalistas.

As esquerdas anticapitalistas sustentam, em linhas gerais, que só a superação do capitalismo criará as condições para uma ampla e verdadeira sociedade de bem-estar social. Nesse último âmbito, devem ser destacadas as seguintes vertentes, isoladas ou combinadas: a) marxismo clássico (defende o protagonismo da classe operária na luta de classes, a abolição da propriedade privada dos meios de produção e a instauração do socialismo como antecedente da sociedade comunista); b) leninismo (acentua a importância de um partido político revolucionário de vanguarda com liderança centralizada e a necessidade da ditadura do proletariado como um período transitório quando da superação do capitalismo); c) trotskismo (enfatiza as ideias de “revolução permanente”, internacionalismo e democracia nas instâncias e processos políticos voltados para as profundas transformações sociais); d) marxismo ocidental (destaca a luta no campo cultural e ideológico) e e) ecossocialismo (defende a conjugação da luta pela justiça social com a proteção do meio ambiente, partindo da concepção de que a crise ecológica é inseparável das estruturas capitalistas).

Entre as direitas, a mais importante subdivisão, notadamente diante do atual cenário político no Brasil e no mundo, aponta para aquelas comprometidas com o regime democrático e os segmentos que atuam contra o sistema democrático. No primeiro grupo, das direitas democráticas, onde os liberais ocupam posição de destaque, existe um prestígio às instituições (em especial os instrumentos da democracia representativa), aos mecanismos de controle do poder político e o respeito aos direitos dos vários segmentos sociais, especialmente das minorias (sociológicas). Um segmento de direita que ganha espaço e visibilidade no debate político é o libertarianismo. Trata-se, em linhas gerais, de uma vertente que defende uma ênfase extremada na liberdade individual. Nessa linha, pugnam por atuações estatais mínimas em níveis até menores do que aqueles classicamente sustentados pelos liberais.

No grupo das direitas antidemocráticas (chamadas pela imprensa e no cotidiano da política, sem rigor técnico ou científico, de extrema-direita ou fascismo) estão aqueles que: a) buscam a superação ou significativa mitigação do ambiente democrático, notadamente com ataques frequentes e sistemáticos às instituições estatais; b) militarização da vida social, incluindo apologia ao uso de armas; c) disseminação organizada e massiva de notícias falsas (fake news) e d) propagação do discurso de ódio, intolerante com a pluralidade e os direitos das minorias (sociológicas, mais uma vez).

Subsiste, portanto, um profundo equívoco na divisão do mundo entre “direita” (no singular) e “esquerda” (também no singular). A complexa e plural formação histórica (por séculos) de escolas e linhas de pensamento nos campos da economia, psicologia, sociologia, direito, política, entre outros, são solenemente ignorados. Tudo e todos são carimbados como “de esquerda” ou “de direita”. A realidade, a nua e crua realidade, com seus inúmeros tons de cinza (entre o branco e o preto), é desconsiderada sem nenhuma cerimônia. No limite, a ignorância política é saudada e homenageada como um cobiçado troféu. Numa inusitada competição de indigência intelectual, quem verbalizar a maior barbaridade ou insanidade leva o prêmio.

Aliás, o maniqueísmo referido funciona como uma excelente zona de conforto, preguiça ou incapacidade intelectual de ler, entender e interagir com um mundo crescentemente complexo e multifacetado. Com efeito, dá muito trabalho e exige muito esforço lidar com dados, argumentos, debates e formar opiniões e convicções próprias, alinhadas ou não com grupos ou movimentos já existentes. É mais fácil e mais cômodo aderir ao suposto movimento do “bem” contra o “mal” ou coisa parecida.

Infelizmente, tem prosperado com uma velocidade preocupante uma tacanha visão de mundo pra lá de lunática. Nega-se até a história da humanidade. É incapaz de identificar nos movimentos sociais mais à esquerda a espinhosa construção dos direitos sociais, notadamente na seara do trabalho, e os pilares do desenvolvimento do Estado de bem-estar social. Não reconhece nos liberais, mais tradicional e respeitável vertente das direitas democráticas, um relevante papel na afirmação dos direitos individuais. As lutas identitárias, buscando a superação de preconceitos, opressões e agressões contra grupos sociologicamente minoritários (mulheres, negros, indígenas, LGBTQIAPN+) não são movimentos historicamente de esquerda. Estão vinculados originalmente aos liberais e são bandeiras atuais dos setores mais esclarecidos da humanidade (das direitas às esquerdas). No Brasil e no mundo, para esse pensamento das trevas medievais, as lutas contra os diversos preconceitos e discriminações virou coisa dos esquerdopatas.

Existe, ainda, uma profunda deturpação em torno do conceito de “ideologia”. Invariavelmente, é tratada como um defeito do pensamento ou mesmo como uma doença mental. Toda e qualquer pessoa (viva) tem ideologia. Sustento, entre as várias visões existentes, que a ideologia é uma concepção de mundo emergente da leitura do real e orientadora da tomada de decisões e do escalonamento de valores. Um exemplo. O combate às desigualdades sociais pode seguir caminhos diversos. Um deles aponta para a utilização ampla de programas públicos (auxílios, distribuição de renda, formação para o trabalho, etc). Outro caminho sustenta a redução da atuação do Estado e o aumento do espaço de ação da iniciativa privada (redução de tributos, aumento da atividade econômica, geração de empregos, etc). Percorrer uma ou outra trilha revela uma escolha político-ideológica. Não creio, portanto, que a ideologia esconde ou distorce a realidade. Pelo contrário, a realidade é o teste inexorável para a ideologia.

Uma palavra sobre as posições de centro na política. O termo “centro” geralmente se aplica a uma posição localizada entre as esquerdas e as direitas no espectro político. Assim como devem ser mencionadas “esquerdas” e “direitas”, devem ser identificados os “centros” (no plural). Cada posição de centro afirma crenças ou políticas de esquerda ou de direita com maior ou menor ênfase. Portanto, é comum a utilização das expressões “centro-esquerda” e “centro-direita”. Aqueles que sustentam posturas de “centro-esquerda” são identificados frequentemente como “progressistas”.  Os integrantes da “centro-direita” são chamados também de “moderados” ou “pragmáticos”.

Em regra, as posições de centro buscam construir um equilíbrio entre os campos das esquerdas e das direitas, notadamente pela construção de compromissos e soluções que contemplem, em graus variados, os interesses de vários grupos ou segmentos sociais. Nessa linha, posturas de centro podem defender ações governamentais de redução do déficit público e controle de despesas governamentais em conjunto com a adoção de políticas sociais voltadas para a proteção aos direitos humanos e o investimento em programas de bem-estar social.

Portanto, a complexidade e a pluralidade marcam as reflexões políticas, econômicas e sociais ao longo da história da humanidade. É um erro monumental, e uma flagrante demonstração de indigência mental, sem contar os interesses escusos envolvidos, reduzir as diferenças nesses campos a um simplório, paupérrimo e insosso embate entre a esquerda (no singular) e a direita (também no singular).

 

 

 

 

 

Por Aldemario Araujo Castro é advogado, mestre e Direito e procurador da Fazenda Nacional.

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