A realidade não muda só porque o mundo político, as elites e a mídia fazem de conta que o Brasil é uma democracia. Escreve J.R. Guzzo.
24/07/2023 08:18
“O povo, recebendo o direito legal de escolher se pagava ou não, decidiu não pagar; haveria algum jeito mais claro e indiscutível de saber o que a maioria quer?”
O Supremo Tribunal Federal, segundo fomos informados pelo ministro Luís Roberto Barroso, é hoje um “poder político” – aliás, de acordo com ele próprio, teve uma “ascensão vertiginosa”. É, também, um poder ilegal, como eram as juntas de governo do regime militar. Não há, na Constituição ou em qualquer lei em vigência no Brasil, absolutamente nada que permita ao STF exercer qualquer tipo de poder político. Se ele teve uma “ascensão vertiginosa”, como diz Barroso, e está governando o Brasil em parceria com o “sistema” Lula, é porque tem o apoio da força bruta e armada – a Polícia Federal e o Exército. Essa é a situação real do Brasil de hoje.
Os analistas políticos passam horas falando e escrevendo sobre “governabilidade”, “equilíbrio entre Poderes” e outras miragens, como se isso aqui fosse a Inglaterra. Mas a realidade não muda só porque o mundo político, as elites e a mídia fazem de conta que o Brasil é uma democracia. A aberração de um STF que se declara “poder político” leva o país a ficar cada vez mais parecido com uma ditadura de Terceiro Mundo – metida à besta, hipócrita e pretenciosa, mas tão convincente para um democrata verdadeiro quando um Luís XV de escola de samba.
Não existe lei no Brasil – e quase todos os dias os ministros do STF dão provas concretas, com as decisões que tomam, de que a sociedade brasileira está vivendo num sistema de selvageria institucional. O que existe, em lugar de um ordenamento jurídico de verdade, é uma sociedade limitada que dividiu o país em duas províncias – metade das ações está com Lula e a outra metade com o Supremo. Juntos eles governam o Brasil num sistema de assistência mútua.
Lula foi posto na Presidência da República pelo STF; agora depende dos ministros para continuar lá, ao mesmo tempo em que usa a Suprema Corte de Justiça para se colocar acima da lei e fazer o que bem entende no governo. O STF, por sua vez, recebe a vassalagem do presidente – e decidiu ligar os seus destinos e o seu bem-estar ao regime Lula-PT-etc. É ali que vê a segurança para o seu futuro; numa democracia de verdade, e com a esquerda reduzida à sua situação real de minoria, o STF terá problemas de sobrevivência. Não vai continuar, com certeza, na sua ascensão vertiginosa.
Que democracia pode conviver com um Supremo que se declara “poder político”? Mais: o STF insiste em impor ao Brasil, pela força, um tipo de sociedade que a maioria da população brasileira não quer, ou teria de ser consultada para dizer se quer ou não. Numa democracia, os ministros não poderiam mais fazer o que bem entendem; por que iriam aceitar, felizes, um regime realmente democrático?
Lula e o STF, na verdade, têm uma convicção essencial em comum – não toleram a manifestação da verdadeira vontade popular, nem aceitam a ideia de que a liberdade é um valor tão importante quanto o Estado. Nada poderia representar de forma mais absoluta a vontade dos brasileiros do que a sua atitude diante do “imposto sindical” – assim que a lei, aprovada pelo Congresso, tornou o pagamento voluntário, ninguém quis pagar mais.
O povo, recebendo o direito legal de escolher se pagava ou não, decidiu não pagar; haveria algum jeito mais claro e indiscutível de saber o que a maioria quer? Pois Lula está exigindo que o trabalhador seja obrigado a pagar de novo o imposto sindical, e o STF está preparado para atender à exigência. “Poder político” é isso.
Por J.R.Guzzo é jornalista. Começou sua carreira como repórter em 1961, na Última Hora de São Paulo, passou cinco anos depois para o Jornal da Tarde e foi um dos integrantes da equipe fundadora da revista Veja, em 1968. Foi correspondente em Paris e Nova York, cobriu a guerra do Vietnã e esteve na visita pioneira do presidente Richard Nixon à China, em 1972. Foi diretor de redação de Veja durante quinze anos, a partir de 1976. Nos últimos anos trabalhou como colunista em Veja e Exame.