Opinião – A independência dos poderes: o respeito às leis e o conflito de interesses

A institucionalização do conflito de interesses (…) ganhou as dimensões que conhecemos a partir da primeira eleição de Lula em 2002. Escreve Eiti Sato.

09/08/2023 08:06

“Talvez esse fato explique a explosão de casos de corrupção que marcou os governos do PT”

Palácio do Planalto, Brasília. Foto: Divulgação/reprodução.

Um ponto em comum nas democracias modernas é o princípio da separação e da independência entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. O entendimento é o de que esse princípio constitui um elemento basilar para a democracia, tanto para evitar o surgimento de uma ditadura quanto para assegurar o respeito aos direitos individuais e das coletividades estabelecidas dentro da nação.

A Constituição Brasileira promulgada em 1988, em seu Artigo 2º, declara formalmente o princípio de que “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Pode-se dizer que, em qualquer constituição, um princípio tem um significado e uma força jurídica que se sobrepõem a qualquer cláusula constitucional, mesmo sobre aquelas que, na Constituição Brasileira, são chamadas de cláusulas pétreas. No sentido filosófico, os princípios é que definem o que Montesquieu chamava de “espírito das leis”.

Apesar de tudo, em um país como o Brasil, em que a prática tem mais efetividade do que quaisquer normas, mesmo que sejam constitucionais, a prática contorna, distorce, ou simplesmente não respeita o que ficou estabelecido em lei. A expressão popular do “jeitinho brasileiro” para essa prática aparece na forma de “leis que pegam, e leis que não pegam”. Dessa forma, na prática, o princípio constitucional da separação e da independência do Poderes da República simplesmente não é respeitado. Executivo, Legislativo e Judiciário interferem-se mutuamente, ou simplesmente agem abertamente desconsiderando atribuições estabelecidas para os demais Poderes.

1 – Teto salarial. Este é um caso notável da prática de contornar normas jurídicas por meio do “jeitinho brasileiro” e da “lei que não pega”. Apesar de haver leis específicas estabelecendo um “teto salarial” para os servidores públicos desde a Constituição de 1988, por meio de artifícios, sobretudo terminológicos, pode-se dizer que esses limites jamais foram respeitados pelo Executivo, pelo Legislativo ou pelo Judiciário, que deveria ser o guardião da ordem e das normas no Brasil. As inúmeras leis, decretos e outros dispositivos legais sempre declararam que as regras seriam aplicadas a todas as esferas de governo (federal, estadual, distrital e municipal) e de Poder (Executivo, Legislativo e Judiciário), incluindo-se Ministério Público, Defensoria Pública, contratados temporários, empregados e dirigentes de empresas públicas que recebem recursos dos governos (dependentes) para pagar salários e custeio de militares e policiais militares, aposentados e pensionistas. No entanto, é sabido que há uma quantidade imensa de casos em que esse teto é largamente ultrapassado tanto para servidores públicos da ativa quanto para aposentados.

2 – A Nova Lei trabalhista. Trata-se de um caso típico de interferência ou de desrespeito à independência dos poderes da República. O STF está em vias de revogar a Nova Lei Trabalhista tramitada e aprovada, observando-se todos os ritos legais, pelo Senado e pela Câmara dos Deputados em 2017. Uma das cláusulas centrais da Lei Nº 13.467, de 13 de Julho de 2017, está expressa no Artigo 579 que diz “O desconto da contribuição sindical está condicionado à autorização prévia e expressa dos que participarem de uma determinada categoria econômica ou profissional, ou de uma profissão liberal, em favor do sindicato representativo da mesma categoria ou profissão ou, inexistindo este, na conformidade do disposto no art. 591 desta Consolidação.” Onde foi que o STF viu falta de clareza e inconstitucionalidade nesta cláusula? O STF não tem atribuição ou autoridade para revogar ou para modificar no seu todo ou em parte, qualquer Lei produzida regularmente pelo Congresso, mas está em votação no plenário do STF a revogação desse Artigo 579 da Nova Lei do Trabalho. A votação ainda não está concluída, mas o placar está em 5 a 0 pela revogação desse artigo e faltam ainda os votos de 6 ministros.

3 – A politização a falta de isenção dos ministros do STF. A nomeação de Ministros do STF era feita pelo Presidente da República a partir de lista tríplice preparada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB). Nas nomeações mais recentes, depois de 2002, primeiramente abandonou-se a prática da elaboração da lista tríplice, e agora, o indicado pelo Presidente nem precisa ter experiência na Magistratura, basta ser de confiança do Presidente. Dos 11 ministros em atividade, sete foram indicados pelos governos do PT, o que seria um fenômeno natural, dada a predominância do partido desde a eleição de 2002. No entanto, em episódio recente, acontecido publicamente, um desses indicados, teria declarado em tom de vitória: “derrotamos (o STF) o bolsonarismo”, significando que, ao julgar, o STF tinha uma intenção. Em qualquer sistema jurídico do mundo, qualquer Corte de qualquer nível não pode ter intenções a não ser a de julgar com isenção, segundo as normas vigentes.

4 – Conflito de interesses. O fenômeno revela a extensão da interferência do Poder Executivo sobre o Legislativo com total cumplicidade do Legislativo. O conflito de interesses é um fenômeno considerado danoso para as instituições porque quando ocorre, a condição moral para o exercício da função do servidor fica comprometida. Quando a simples suspeição de que um servidor está ligado a interesses concorrentes, sua condição para exercer suas funções com a devida isenção já fica comprometida. O público precisa confiar que as ações de qualquer servidor realizam-se sempre com isenção, tendo por objetivo apenas executar as tarefas para as quais foi contratado e eleito segundo as normas e segundo suas capacidades e seu discernimento. As ações do servidor não podem levantar a suspeição de que podem estar visando ao favorecimento de terceiros e a si mesmo. Por essa razão o conflito de interesses é associado a corrupção e a desvios de conduta. De forma mais comum, considera-se como conflito de interesses quando um servidor público (nomeado ou eleito) ocupa um cargo ou função pública e, ao mesmo tempo, mantém laços com organizações ou iniciativas empresariais privadas.

Nos EUA, também se considera conflito de interesses a situação em que um servidor de um Poder se envolve com as funções de outro Poder do Estado. Por essa razão, nos EUA, um deputado ou senador não pode assumir cargos no Executivo ou no Judiciário sem antes renunciar a seus mandatos de deputado ou de senador. No Brasil, a oferta de cargos e de posições no Executivo é uma pratica utilizada abertamente para interferir e influenciar o Legislativo, assim como as nomeações para o STF tem o propósito claro, e sem qualquer pudor, de ter ministros favoráveis ao governo.

A institucionalização do conflito de interesses dentro do Estado brasileiro é uma prática que foi introduzida pelo Estado Novo de Getúlio Vargas, mas que ganhou as dimensões que conhecemos a partir da primeira eleição de Lula em 2002. Talvez esse fato explique a explosão de casos de corrupção que marcou os governos do PT. No Brasil o conflito de interesses na realidade passou a fazer parte da própria cultura política corrente.

O fenômeno do conflito de interesses atinge principalmente a relação público/privado, apesar de tudo, a literatura corrente no Brasil a respeito do tema refere-se basicamente ao campo da administração dos negócios privados. Os autores são estudiosos de Administração de Empresas e não da política, e apresentam casos, debatendo os males produzidos pelo conflito de interesses na forma de corrupção e de desvios de conduta, que acometem ou que podem acometer as organizações empresariais que não cuidam de se prevenir do conflito de interesses. Por outro lado, na Ciência Política brasileira, que estuda o comportamento do setor público, o conflito de interesses é muito pouco estudado e foi até mesmo agraciado e legitimado como um modelo de governança chamado pomposamente de “presidencialismo de coalizão”.

 

 

 

 

Por Eiti Sato, é professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília desde 1983. Foi Diretor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (2006-2014). Foi Chefe da Assessoria Internacional da Universidade de Brasília (2014-2016).

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