Opinião – O samba elétrico

O Consórcio de Governadores do Nordeste já se alinhou para manter a “corrida do ouro”, que alguém já apelidou de a “Disney das renováveis”. Escreve Edvaldo Santana.

14/08/2023 05:53

“Stanislaw Ponte Preta, pseudônimo de Sérgio Porto, se vivo fosse, faria o “samba dos brancos doidos”. A melodia e o enredo já existem.”

Divulgação/reprodução

No dia 4 de agosto, assistia ao Bom dia DF, da Globo Brasília. O repórter listava irregularidades nas obras do Pontão do Lago Sul, dentre elas a construção de um restaurante onde era previsto um museu. O Pontão é uma área de entretenimento na região mais nobre de Brasília.

Achei estranha a decisão do governo do DF (GDF). O restaurante poderia ser construído no interior do museu, como acontece nas grandes cidades. Um museu, como polo de divulgação da cultura, é um mecanismo de inclusão, uma rara chance de espaço dividido entre rico e pobre. Talvez essa “rara chance” não combine com a nobreza do Pontão do Lago Sul ou com os critérios de escolha do GDF, embora as pessoas não saibam que estão a ser enganadas.

A escolha social é dos campos mais interessantes da Economia. O professor Amartya Sem (A ideia de justiça) usa um caso simples para mostrar a subjetividade e quanto o processo de seleção é vulnerável ao arbítrio do decisor. Três crianças (A, B e C) disputam a posse de uma flauta. A entende que deve ser dela o instrumento. É a única que sabe tocá-lo. B, por outro lado, acha que a flauta seria sua. Das três, é única que, por ser muito pobre, não tem brinquedo ou dinheiro para comprar. É de C a justificativa mais natural. Embora não saiba tocar, construiu o instrumento. E você, o que acha?

Um decisor com convicções liberais, provavelmente diria que a flauta deve ser de C, mesmo que fique sem qualquer utilidade. Não é o que faria um socialista. O instrumento deveria ser doado a B. Minimizaria o abismo social. Um economista adepto da teoria da utilidade entenderia que é grande o ganho marginal de a flauta ser entregue a B, mas que isso afetaria seu valor de uso, pois o instrumento ficaria sem qualquer aplicação. Mas ele também atribuiria elevado valor ao direito de propriedade de C, que usou seus recursos e trabalho para produzir a flauta. E não teria dúvida da utilidade da flauta se ela fosse de A.

A escolha não pode ser resumida a essas três “caixinhas” (do liberalismo, socialismo e utilitarismo). Talvez tenha sido essa a opinião dos coreanos do sul. A educação é o fator-chave no processo de escolha. Com ênfase na educação, B e C teriam oportunidade para estudar música e aprender a tocar a flauta. A e B adquiririam conhecimentos para fazer uma flauta ou outro instrumento. B, a partir dos estudos, teria mais chances para sair da pobreza e reduzir a diferença social. E vai por aí.

Mas há casos em que os critérios são estruturados para ludibriar, mas ninguém se importa. Richard Thaler (Comportamento inadequado) apresenta um exemplo muito utilizado. Os alunos costumam reclamar quando a média das notas fica abaixo de 70 ou 75, numa escala de 0 a 100, mesmo que os conceitos finais (A, B, C, D e E) não tenham relação direta com tais notas.

A estratégia do professor é ampliar a escala, por exemplo, de 0 a 143. Os alunos ficariam agora radiantes com a nota 95, ainda que represente menos de 65% de acertos. Elevam a autoestima, mesmo com a redução da nota.

Uma situação bem conhecida no Brasil é a atribuição de notas nos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro. Nenhum dos quesitos (bateria, enredo, mestre-sala e porta-bandeira etc.) pode ter nota inferior a 9. Com isso, a Escola que desfila com fantasias sujas, com bateristas que não sabem tocar e com o samba sem graça tem nota parecida com aquela que foi brilhante em todos os quesitos.

É uma boa estratégia para acentuar o amor-próprio, e até para estimular o empenho no ano seguinte, mas leva ao conformismo. Na escala de 90 a 100, a nota 95 corresponde 5 na escala de 100, sendo, dessa maneira, uma forma de autoengano. Mas funciona muito bem. E não pense em mudar.

No dia primeiro de agosto, a diretoria da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) se reuniu para a aprovar a revisão tarifária da distribuidora do Pará. A recomposição da tarifa seria de mais de 16% para os pequenos consumidores, como esperado. Na reunião, um Deputado Federal e a Defensoria Pública se manifestaram contra o aumento. No dia seguinte, o governador do Pará emitiu nota em que requer intervenção do Congresso Nacional, de modo a desautorizar o regulador. E não é a primeira vez que isso acontece.

Porém, pelo menos 6 pontos percentuais da tarifa do Pará são explicados pelo furto de energia, um dos maiores do Brasil. É tão escandaloso que a distribuidora quase não tem um benchmarking. As autoridades policiais do Pará nada dizem acerca da ausência do Estado no combate à perda por furto, que é paga pelos consumidores que não fraudam.

Há menos de 30 dias o Senado aprovou um Projeto de Decreto Legislativo (PDL 365) que anula uma norma da Aneel. Para o regulador, o sinal de preço indica que a tarifa de transmissão dos consumidores do norte e do nordeste deveria reduzir, enquanto aumentaria, em idêntica proporção, essa mesma tarifa para as usinas. O PDL, que foi aprovado também pela bancada do Pará, desfaz essa lógica tecnicamente perfeita, e aumentará a tarifa.

E coisa semelhante sucederá nos estados do nordeste, que referendaram a aprovação do PDL e outras artimanhas que pioram a vida dos consumidores das regiões mais pobres. O Consórcio de Governadores do Nordeste já se alinhou para manter a “corrida do ouro”, que alguém já apelidou de a “Disney das renováveis”. Mais aumento de tarifas.

É esse modus operandi que leva à deprimente cena do dia 8 de agosto, quando diretores da Aneel abandonaram a reunião pública por não concordarem com uma indicação política não combinada.

Tal agência, que já foi tratada como objeto da “terceirização do Estado”, teve sua independência fortalecida com argumentos técnicos e econômicos consistentes, que a levaram a enfrentar, e vencer, uma Comissão Parlamentar de Inquérito. Hoje, é rotineiramente intimidada e humilhada pelo Congresso, o que lhe enfraquece mortalmente.

Mas tudo isso é um desastroso processo de escolha. A estridência dos governantes e o jeitinho parlamentar, em busca da “NOTAAA DEZZZ”, não passam de um embuste, um jogo de cintura, um samba elétrico, como a repartição de notas nos desfiles do Carnaval. O PDL 365, bem como o pedido de intervenção, funciona para criar falsas expectativas, mas esconde a realidade, que são o arbítrio e as interferências parlamentares que elevam os custos da eletricidade.

Stanislaw Ponte Preta, pseudônimo de Sérgio Porto, se vivo fosse, faria o “samba dos brancos doidos”. A melodia e o enredo já existem.

 

 

 

 

Por Edvaldo Santana, É professor titular aposentado pela Universidade Federal de Santa Catarina, onde chefiou o Departamento de Economia e coordenou o curso de Pós-graduação na mesma cadeira. É mestre e doutor em Engenharia de Produção pela UFSC. Ex-Diretor da Aneel.

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