O cientista indiano-americano vencedor do Prêmio Nobel Paz e Prêmio Mundial de Alimentação, propõe de baixo carbono na agricultura brasileira como modelo global.
18/08/2023 07:54
“De alguma forma é preciso mudarmos as percepções, o mindset, a crença entre as pessoas de que a agricultura é um problema” – Rattan Lai
O cientista indiano radicado nos Estados Unidos, Rattan Lai, co-laureado com o Prêmio Nobel da Paz em 2007 e vencedor do Prêmio Mundial da Alimentação em 2020, propõe que o programa brasileiro de Agricultura de Baixo Carbono (ABC) sirva como modelo para outros países pobres e em desenvolvimento.
Por meio de juros mais baixos, o Programa ABC financia ações de recuperação de pastagens degradadas, plantio direto na palha e integração lavoura-pecuária-floresta (ILPF), dentre outras práticas conservacionistas e que contribuem para redução das emissões de gases de efeito estufa. Somente na savana africana, segundo Lal, há 193 milhões de hectares de pastagens e 54 milhões de terras agrícolas que poderiam ser beneficiados pela moderna tecnologia agropecuária tropical brasileira, devido às similaridades dos biomas.
“O sucesso do programa ABC precisa ser traduzido, extrapolado e amplificado para países em desenvolvimento ao redor do mundo. O milagre do Cerrado é um exemplo do que pode ser feito na África. Acredito que os países dos Brics, juntos, podem fazer uma grande diferença”, afirmou Rattan Lai durante conferência na 78.ª Semana Oficial de Engenharia e Agronomia (Soea), realizada em Gramado (RS).
Dizendo-se otimista em relação ao futuro, Lai entende que o Brasil não deve se contentar em ter uma agricultura rotulada como carbono neutro. “A meta não é zero emissão, mas emissão negativa. Acabamos de enviar um documento para os formuladores da Farm Bill dos Estados Unidos, em que defendemos o pagamento de 50 dólares por acre por ano pela adoção de tecnologias conservacionistas que sequestram carbono no solo. Se isso acontecer, espero que o Brasil siga no mesmo caminho”, enfatizou o cientista.
Depois de falar à plateia de engenheiros brasileiros, Rattan Lai, que é professor de Ciências do Solo da Ohio State University, conversou com a Gazeta do Povo. Veja os principais trechos.
É preciso mudar o mindset em relação à agricultura
O senhor diz que o mundo precisa transformar as soluções agrícolas em soluções ambientais. No entanto, ainda tem muita gente que vê essas duas áreas em conflito, como se não fossem complementares. Como resolver isso?
É o que acontece, a agricultura é acusada por toda parte, seja no Brasil, seja na Índia. De alguma forma é preciso mudarmos as percepções, o mindset, a crença entre as pessoas de que a agricultura é um problema. Isso envolve comunicação, educação, para compreender que a agricultura é absolutamente importante, é a fonte da comida que todos precisamos, três vezes por dia.
Precisamos assegurar que nossa agricultura tenha um perfil de produzir mais, com menos. Menos terra, menos água, menos energia, menos emissão de gases de efeito estufa, menos poluição, menos perda de biodiversidade. E isso é possível. Se adotarmos as melhores práticas, podemos poupar áreas da natureza. De 5 bilhões de hectares dedicados à agricultura atualmente no mundo, acredito que metade pode acabar retornando à natureza, se praticarmos uma agricultura melhor.
O Brasil tem uma imensa floresta amazônica protegida. Mas os pastos que foram tomados da Amazônia, e que estão degradados, é possível reflorestá-los. O crescimento de florestas secundárias pode ser uma solução, e durante o crescimento dessas florestas secundárias é possível integrar agricultura e pecuária. Há muitos mecanismos em que a agricultura pode e dever ser a solução.
Milagre do Cerrado: uma conquista do mundo moderno
Em suas palestras, o senhor tem afirmado que o “milagre do Cerrado”, ou seja, a produção de alimentos num bioma que antes era considerado inapto, foi uma das mais importantes conquistas do mundo moderno. É possível conciliar produção e preservação no Cerrado?
Por um lado, sim, a agricultura intensiva no Cerrado criou emissões, alguns problemas de erosão do solo, degradou um tanto da biodiversidade, mas não precisa ser assim. Se você praticar uma agricultura melhor, deixando à parte as terras que são vulneráveis à degradação, reintegrando-as à natureza, dá para fazer da agricultura uma solução.
E para incentivar o produtor a praticar a agricultura amigável à natureza, é preciso recompensá-lo. Isso é crítico. Não se trata de recompensar o produtor por produzir mais, mas por praticar uma agricultura melhor. E esse mecanismo de recompensa pode se tornar um modelo, do Brasil para os Brics, para os países em desenvolvimento, para a África e outros lugares.
Precisamos olhar para a agricultura como uma solução para a questão ambiental. As pessoas que acusam a agricultura deveriam repensar, e mudar seu mindset. Respeitar os produtores, sua profissão, em vez de acusá-los.
Não existe ar e água puros, se não houver solo saudável
Outra queixa sua é de que as pessoas com frequência falam da preservação do ar, da água, do meio ambiente, mas não falam do solo, que está na base de tudo…
Exatamente. Você não consegue ter ar e água puros, se não tem solo. Infelizmente as pessoas não prestam atenção nisso. Nos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável para o Milênio (ODS, da ONU), nenhuma vez aparece a palavra solo. Como é possível pôr fim à fome se não houver solo, como pôr fim à pobreza se o solo não é saudável? Como ter água mais pura, se o solo é o melhor filtro para a água? Como ter ar mais puro, se é o solo que respira nitróxidos e outros gases de efeito estufa?
E o solo pode enterrar carbono…
Exatamente. O solo é o maior reservatório de carbono na biosfera terrestre. Pode pegar o excesso da atmosfera e reter por um longo tempo, por milênios. Não é apenas emissão neutra. Neutro é nada, serve para a indústria. Na agricultura, trata-se de emissão negativa.
Vários cientistas brasileiros mereceriam o Prêmio Nobel
O ex-ministro da Agricultura Alysson Paolinelli, que faleceu recentemente, merecia um prêmio Nobel pelo que ele fez pela agricultura brasileira, particularmente pela revolução da produção de alimentos no Cerrado?
Não só ele, mas muitos cientistas brasileiros mereceriam o prêmio Nobel. A Johanna Döbereiner, por exemplo, que trabalhava na Embrapa no Rio de Janeiro, foi pioneira em mostrar que a braquiária fixa nitrogênio. Mas infelizmente a agricultura não é parte dos assuntos que recebem Prêmio Nobel. Isso é porque as pessoas pensam que a agricultura não é uma ciência. Mas de fato é uma ciência muito importante, e isso deveria ser reconsiderado.
Para o senhor, o solo é um ser vivente, e como tal, deve ter seus próprios direitos. Que direitos são esses?
Primeiramente, é preciso entender que o solo é uma entidade vivente. O solo é o habitat de 25% de toda a biodiversidade terrestre. O solo respira, como eu e você. É o único lugar do universo capaz de transformar morte em vida. A águia careca nos EUA tem seus direitos, a borboleta monarca e os ursos panda têm seus direitos, como é que o solo não tem direitos?
Só porque você é dono de um pedaço de terra, não quer dizer que você pode abusar do solo, poluir e contaminá-lo. Solo e vida andam juntos. Todas as religiões, seja cristianismo, judaísmo, islamismo, budismo ou hinduísmo, todas dão ao solo o status de mãe-terra. Infelizmente, em muitos países a mãe, que nos dá o nascimento, e o solo, que é uma dádiva para todos, nós falamos sobre eles, mas não os respeitamos.
Isso não quer dizer que o solo, e o meio ambiente, devam ser vistos como santuários intocáveis, em oposição à atividade agrícola?
A agricultura precisa ser feita de maneira adequada. A diferença entre o veneno e o remédio é a dose. O tempo entre uma dose e outra, o volume desta dose. Se você tomar uma aspirina, cura tua dor de cabeça. Se tomar uma centena, pode morrer. Então, o fertilizante, o pesticida, o químico, a energia, deveriam ser utilizados com dose de remédio. Não de forma indiscriminada. É o uso indiscriminado, excessivo e não científico que torna este químico um veneno. Isso é a chave para compreender o que eu disse, que não precisamos 200 milhões de toneladas de fertilizantes, porque a eficiência de uso é de apenas 30%. Se melhorarmos a eficiência de uso, diminuiremos os volumes demandados. Basta usarmos fertilizantes e água por irrigação, gota a gota, quando necessário, e não de maneira grosseira e desperdiçadora.
“Brasil tem dever moral de ajudar a África”
Sua tese é de que a agricultura tropical praticada no Brasil pode ser útil se aplicada nos países africanos, para combater a fome. Há quem diga, no entanto, que não devemos ensiná-los, porque vão competir conosco. Como conciliar isso?
Vou usar um ditado em sânscrito, a linguagem ancestral, que estudo e gosto muito. Somente duas palavras: जगत् कुटुम्बम् अस्ति. ‘O mundo é uma família’. More você no Brasil, na África ou índia, somos todos uma só família. E quando um membro da família está passando fome, a família deve cuidar dele. Então, nossos irmãos e irmãs em qualquer lugar do mundo, se estão precisando de comida, e o Brasil tem a capacidade científica de produzir mais comida, o Brasil tem o dever moral de ajudar os outros membros da família.
O próprio Brasil já foi ajudado. E agora é hora de dar de volta, é recíproco. E o Brasil vai ganhar, e não perder. Vai ganhar economicamente, socialmente, moralmente, culturalmente. O Brasil tem população africana, vocês sabem disso.
A guerra na Ucrânia afetou o mundo todo, especialmente a África, porque somos todos interdependentes, interconectados. A paz e a tranquilidade mundial nunca chegarão enquanto houver algum lugar em que as pessoas passam fome. Quando as pessoas estão famintas e desesperadas, e tem um fogo queimando no fundo de seus estômagos vazios, isso é causa de guerra, de desespero. As pessoas se dispõem a fazer qualquer coisa. Não é possível ter paz com o estômago vazio.
Se o Brasil ajudar a África, ajudar as nações do Caribe, os países andinos, isso pode elevar o prestígio do Brasil. Torná-lo um líder. É uma oportunidade que não deve ser perdida.
Texto publicado originalmente na Gazeta do Povo, por Marcos Torsi – Jornalista e publicitário formado pela UFPR, viajou a Gramado a convite do Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (Confea)