Opinião – Eliminar ou perpetuar a pobreza: dar ou não dar esmola?

A pior forma de esmola é conhecida na América Latina como “clientelismo”: a troca de bens, favores, empregos, cargos e serviços por apoio político. Escreve Jonas Rabinovitch.

24/08/2023 07:22

“Ao mesmo tempo, parece que ainda há a ilusão de uma solução em cada esquina”

Imagem ilustrativa.| Foto: Eli Vieira com Midjourney

Depois de viver 30 anos nos Estados Unidos, acabei de passar cinco meses no Brasil. Andando no Rio de Janeiro, vivi um drama de consciência a cada esquina: dar ou não dar esmola? Sem saber o que fazer, busquei ajuda com o ser mais próximo de Deus que conheço: o Google.  Recebi 362.000 resultados em menos de um segundo.

Não apenas deixei de receber uma resposta definitiva, como ainda recebi perguntas adicionais: Qual é a diferença entre caridade e esmola? Quanto ganha uma pessoa pedindo esmola? O que as religiões falam sobre esmola? Pedir esmola é um fenômeno universal? O Chat GPT, um parente mais avançado e rival do Google, apenas consolidou minhas dúvidas de maneira extremamente articulada, sem responder nada. Mais ou menos como os maus políticos fazem.

Por enquanto, cheguei a seis conclusões principais:

1) A caridade faz parte da natureza humana. Não é por acaso que religiões existindo há milhares de anos estabelecem essa prática. Ao mesmo tempo, religiões parecem enfatizar que a forma de se dar esmola talvez seja até mais importante. No Judaísmo, a doação se chama “Tsedaká” e significa justiça. No Islamismo também há um princípio básico para doações chamado “Zakat”, significando “aquilo que purifica”. No Cristianismo, o Evangelho de Mateus cita Jesus: “Quando, pois, você der esmola, não fique tocando trombeta como fazem os hipócritas”.  Ou seja, a motivação para doar não deveria ser egoísta e espalhafatosa.

2) Há uma diferença importante entre doações para indivíduos ou para instituições. Há instituições sociais, igrejas, ONGs, prefeituras que mantêm cursos profissionalizantes para a população de baixa renda, inclusive prestando ajuda psicológica aos necessitados. Por exemplo, em 2021, a cidade de Foz de Iguaçu fez uma campanha, aprovada pelo Legislativo municipal, com o tema: “Não Dê Esmola. Dê Oportunidade”, conjuntamente com um programa socioeducativo.

3) Doações refletem o imenso espectro da natureza humana: há gente que dá esmola para que o mendigo deixe de incomodar. Alguns doam institucionalmente porque convém na dedução dos impostos. Outros doam porque é uma boa propaganda para sua campanha política ou para um produto. Uns doam para se sentirem bons ou para que outros os considerem generosos. Já outros doam porque não suportam ver alguém que parece sofrer.

4) O pedinte também reflete o imenso espectro da natureza humana. Há mendigos “profissionais” que inventam histórias e situações para tirar proveito da generosidade humana. Outros são usuários de drogas que fazem isso para manter o vício. Por outro lado, alguns dependem de esmola como último recurso. Kant disse: “Ao mendigar, o homem mostra o mais alto grau de desprezo por si próprio”. Kant achava que o ato de mendigar transfere a resolução de um problema público para a esfera particular.

5) Nos EUA, o ato de pedir esmola se chama “panhandling”. Há instituições que fazem lobby contra panhandling, inclusive tornando-o ilegal ou delimitando áreas específicas. Também há instituições que fazem lobby a favor do panhandling, incluindo esquemas de abrigos para pessoas carentes. Segundo um mendigo em Nova York chamado Steve Baker, citado pelo Manhattan Institute: “Um mendigo pode ganhar de 30 a 40 mil dólares por ano (150 a 200 mil reais por ano), dinheiro livre de impostos”.

6) A convite de vários governos tive a oportunidade de visitar países como Bangladesh, Costa do Marfim, Índia, Nepal, Zimbabwe etc. para contribuir em questões de renda e habitação.  Pude ver que pedir esmola é um ato universal, mas com aspectos variáveis. Por exemplo, na Índia há associações de “Moradores de Calçadas” que vão além da mera caridade e assistencialismo, dando até apoio jurídico a moradores de rua. Na África, é mais fácil ser pobre em Uganda do que ser pobre em Ruanda devido aos programas de proteção social desenvolvidos pelo governo. Sei que não há sentido prático em comparar desgraças, mas as situações que vi no Kenya, ou em Bangladesh, são muito mais insalubres do que em qualquer comunidade no Rio de Janeiro.

Considerando tudo isso, percebo que a filosofia de Kant se tornou profética quando muitos governos na América Latina, inclusive no Brasil, transferem responsabilidades que seriam públicas para a consciência privada de cada cidadão. Na realidade, a pior forma de esmola é conhecida na América Latina como “clientelismo”: a troca de bens, favores, empregos, cargos e serviços por apoio político.

Isso acontece entre maus políticos e eleitores que trocam seus votos por dentaduras; acontece entre traficantes ricos e moradores pobres nas comunidades – os quais recebem proteção, benefícios e emprego dos chefes do tráfico nos morros; mas também pode acontecer quando um governo estabelece várias comissões para debater esquemas de proteção social básica sem a preocupação de prover os beneficiários com capacitação, educação, profissionalização e dignidade.

Se acontecer dessa forma, o país acaba dando uma espécie de esmola estrutural que apenas perpetua o ciclo vicioso da pobreza. O mercado, que parece ter virado palavrão no atual governo, tem sido o meio universal de gerar renda e empregos de forma sustentável nos países mais desenvolvidos. Caso contrário, corremos o risco de ter apenas esquemas de dependência governamental gerando cabides de emprego para aparelhamento ideológico das instituições. Nessas circunstâncias, está demonstrado historicamente que a carga tributária e a inflação aumentam, os preços sobem e o pobre sofre ainda mais. Ao mesmo tempo, parece que ainda há a ilusão de uma solução em cada esquina – dependendo apenas da sua consciência e do seu bolso.

 

 

 

 

Por Jonas Rabinovitch é arquiteto urbanista com 30 anos de experiência como Conselheiro Sênior para Inovação e Gestão Pública da ONU em Nova York.

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