Haverá um grupo de pessoas que, por mais equivocadas que estejam (…) serão transformadas em cidadãos de segunda classe. Escreve Diogo Schelp.
24/08/2023 11:24
“É uma ilusão acreditar que banir cidadãos das redes sociais (…) servirá à proteção da nossa democracia”
Foi noticiado hoje que a PGR (Procuradoria-Geral da República) cogita oferecer uma punição alternativa aos participantes dos atos com intenções golpistas de 8 de janeiro que não participaram diretamente da invasão de prédios públicos, mas de alguma forma incitaram esses acontecimentos. Aqui se enquadra, por exemplo, quem acampou em frente ao quartel em Brasília, exigindo que os militares agissem para impedir a posse ou a continuidade do governo Lula, ou quem usou as redes sociais para inflamar a massa de vândalos. Uma das punições alternativas a serem propostas pela PGR seria suspender o acesso dessas pessoas às redes sociais, o que as livraria da prisão e de perder a primariedade penal. O problema é que essa medida, que já se tornou corriqueira em decisões judiciais no Brasil, configura censura prévia.
Proteger a democracia com censura prévia é um contrassenso. Proibir essas pessoas de usar as redes sociais por alguns anos sob o pretexto de proteger a sociedade das ideias nocivas ou perigosas que podem ser expressas ali é uma temeridade por pelo menos dois motivos. Primeiro, porque cria a noção de que todos os pensamento ou opiniões advindos de determinados indivíduos são inaptos para serem expostos em público. Essas pessoas tornam-se, aos olhos da Justiça, párias do debate público. Elas ficariam proibidas de se expressar sobre qualquer assunto, já que estariam alijadas das principais plataformas de manifestação pública de pensamento. Trata-se, na prática, de uma mordaça. Isso vai gerar, com razão, uma sensação de injustiça e perseguição.
Essa insatisfação pode criar grandes problemas sociais e políticos para o Brasil, agravando o barril de pólvora que se tornou a polarização ideológica no país. Haverá um grupo de pessoas que, por mais equivocadas que estejam em relação a questões políticas, serão transformadas em cidadãos de segunda classe no que se refere à liberdade de pensamento, um dos pilares de um regime democrático. Eles serão aprisionados no pensamento, o que talvez seja até pior do que o aprisionamento físico. Liberdade é como água, ela procura todas as brechas, todas as rachaduras nas barragens, para poder existir.
Vetar alguns cidadãos de se expressar livremente vai estimular a clandestinidade, o anonimato nas redes. E a Constituição é clara nesse sentido, no artigo 5º: “É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato.” Ou seja, banir cidadãos das redes sociais viola a Constituição no que se refere à livre manifestação de pensamento, e empurra as pessoas a recorrerem elas próprias à violação constitucional, ao buscar o anonimato para expressar suas ideias.
Uma coisa é punir alguém por algo específico que ele disse ou divulgou aos quatro ventos e que, na avaliação da Justiça, causou um dano à sociedade ou às instituições do Estado. Outra, muito mais grave, é punir essa pessoa por algo que ela ainda não disse, apenas porque potencialmente pode vir a dizer.
Isso nos leva ao segundo motivo pelo qual o veto ao uso das redes sociais para os incitadores dos atos de 8 de janeiro é um perigo. Trata-se de um precedente para a banalização do pior tipo de censura que existe, a censura prévia.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo 19, diz: “Todo homem tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”.
A censura prévia destrói esse direito da maneira mais brutal, pois impede a expressão de ideias e opiniões antes mesmo que ela ocorra. Uma decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos de 1931 é pedagógica sobre a gravidade da censura prévia. No caso “Near versus Minnesota”, um jornal local recorreu à última instância depois de ter sido proibido de publicar reportagens críticas a autoridades estaduais e ao governador eleito. A Suprema Corte deu ganho de causa do jornal, afirmando que o governo não podia restringir a a divulgação de um conteúdo antes de sua publicação, mesmo que ele viesse a se provar ilegal posteriormente.
No Brasil, houve um caso semelhante recentemente. No ano passado, o senador Flávio Bolsonaro pediu à Justiça que impedisse o portal UOL de publicar reportagens sobre a compra de imóveis em dinheiro vivo por ele e por integrantes de sua família. O caso chegou ao STF e o ministro André Mendonça derrubou a censura imposta pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJ-DFT). Em seu despacho, Mendonça foi categórico:
“No Estado Democrático de Direito, deve ser assegurado aos brasileiros de todos os espectros político-ideológicos o amplo exercício da liberdade de expressão. Assim, o cerceamento a esse livre exercício, sob a modalidade de censura, a qualquer pretexto ou por melhores que sejam as intenções, máxime se tal restrição partir do Poder Judiciário, protetor último dos direito e garantias fundamentais, não encontra guarida na Carta Republicana de 1988.”
É uma ilusão acreditar que banir cidadãos das redes sociais, a praça pública da era digital, mesmo aqueles conhecidos por suas ideias estapafúrdias e por vezes criminosas, servirá à proteção da nossa democracia. Ao contrário. O resultado será a abertura de um precedente perigoso para que a censura prévia torne-se a norma, e não mais uma raridade para casos excepcionalíssimos.
Por Diogo Schelp, jornalista, foi editor executivo da revista Veja, onde trabalhou durante 18 anos. Fez reportagens em quase duas dezenas de países e é coautor dos livros “Correspondente de Guerra” (Editora Contexto), finalista do Prêmio Jabuti 2017, e “No Teto do Mundo” (Editora Leya).