Opinião – A tropicalização da tentativa europeia de regular mercados digitais no Brasil

É fundamental que haja um debate abrangente e plural, com participação ativa da sociedade e das empresas que poderão ser reguladas. Escreve Brunno Carmona Calado.

15/09/2023 07:06

“Esta proposta tem o poder de afetar direta e consideravelmente os negócios e a vida de brasileiros”

 

Um dos principais temas do último ano no Congresso Nacional tem sido a criação de mecanismos para regulação do ambiente virtual. Esse fato não tem ocorrido apenas no Brasil, mas em todo o mundo, uma vez que houve um aumento considerável nas relações entre indivíduos por meio da Internet, principalmente após o período de pandemia. Tais relações não se limitam às redes sociais e envolvem também questões econômicas, principalmente de grandes empresas que geram milhões de empregos no mundo e que estão no cerne do crescimento da economia global.

No Brasil, para além do debate sobre o PL das Fake News (2630/2019) e das discussões acerca da Inteligência Artificial no Senado Federal, há um outro assunto que tem se destacado: a regulação de mercados digitais. Esse debate não é novo na Europa, dado que já existe no continente europeu o Ato de Mercados Digitais (Digital Market Act – DMA). Nesse sentido, nota-se que as discussões sobre esse assunto têm ganhado notoriedade, principalmente após a apresentação do PL 2768/2022, pelo deputado federal João Maia (PL/RN).

No PL 2768/2022, percebe-se uma clara inspiração da proposta brasileira no Ato de Mercados Digitais europeu. Após a análise de ambos, fica nítida a tentativa de regular questões concorrenciais e econômicas por parte do ente estatal, no caso do Brasil, e supranacional, no caso da União Europeia. Em razão disso e dos debates que têm ocorrido na Câmara dos Deputados, mais notadamente na Comissão de Desenvolvimento Econômico (CDE), em que o PL tem como relatora a deputada Any Ortiz (Cidadania/RS), é fundamental que a sociedade brasileira tenha minimamente a ciência de diferenças e similaridades referentes ao DMA e ao PL 2768/2022.

Por isso apresentamos os principais pontos trazidos por ambas as propostas em temas que são extremamente relevantes, tais como a definição das empresas consideradas com controles de acesso (“gatekeepers”) e de termos utilizados em ambas as legislações, os meios de regulação e de aplicação de sanções, as obrigações previstas a empresas que deteriam controles de acesso, as exceções a medidas obrigacionais impostas e meios de combate à concentração de mercado.

Definição das empresas com controle de acesso (“gatekeepers”)

O DMA dispõe não apenas das condições necessárias para que determinada empresa seja considerada uma controladora de acesso e, consequentemente, se enquadrar no que regula o Ato, mas também da possibilidade de revisão do status dela nessa categoria. Em suma, para o DMA, uma empresa será designada como controladora de acesso se preencher as três condições: (i) tiver um impacto significativo no mercado interno; (ii) prestar serviço essencial de plataforma que constitui uma porta de acesso importante para os utilizadores profissionais chegarem aos utilizadores finais; (iii) se beneficiar de uma posição enraizada e duradoura nas suas operações ou se for previsível que possa vir a se beneficiar de tal posição num futuro próximo.

O PL não traz definição clara em relação ao que seria considerado “controlador de acesso”. Há apenas uma citação no §1° do art. 2° da proposta e o termo não é explicado no PL nem no art. 6°, em que define termos na proposta do deputado João Maia (PL/RN).

Ambas as legislações utilizam o termo “controlador de acesso” para tentar impor a regulação, mas Enquanto o 2768/22 nada diz sobre a definição de empresas que teriam o status de “controlador de acesso”, o DMA traz de forma bem específica as condições para que empresas sejam consideradas controladoras de acesso. Assim, na União Europeia, há maior segurança jurídica na definição sobre qual empresa recairá as obrigações previstas no Ato.

Definição de termos utilizados nas legislações

Em seu art. 2°, o DMA traz as principais definições de termos do Ato, dentre eles os de “controlador de acesso”, “serviço essencial de plataforma”, “serviço de intermediação online”, “utilizador final”, “utilizador profissional”, “interoperabilidade”, entre outros.

Em seu art. 6°, o PL traz várias definições de termos utilizados na proposta, tais como os de “operador de plataformas digitais”, “plataformas digitais”, “usuário profissional” e “usuário fina”l. Além disso, o dispositivo ainda deixa margem para que a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) inclua novas modalidades de plataformas digitais.

O PL 2768/22 traz definições parecidas com as do DMA, tais como os tipos de usuários, entre outras. A principal definição na legislação, que é a empresa que poderia ser considerada detentora de controle de acesso, não é mencionada no PL 2768/22, enquanto há definição específica de “controlador de acesso” no DMA, tal como informado acima.

Meio de regulação e aplicação de sanções

O DMA é claro em definir a Comissão Europeia como ente regulador do que é previsto no Ato, entre os art. 20 e 31. Nesses dispositivos, há previsão de diversos meios para que a entidade regule o Mercado Digital na União Europeia, tais como abertura de procedimentos (art. 20); (ii) pedido de informações (art. 21); realização de inquirições e inspeções (art. 22 e 23); adoção de medidas provisórias (art. 24); negociação de compromissos para serem adotados por empresas definidas como controladores de acesso (art. 25); e definição de multas às empresas (art. 30 e 31).

Na proposta brasileira, a regulação e a aplicação de sanções são fundamentadas no art. 3°, em que amplia o escopo de atuação da Anatel, que seria a entidade responsável pela regulação e pela aplicação de sanções. Além disso, no art. 16, o PL define sanções em caso de desrespeito às obrigações impostas, tais como multas sobre o faturamento econômico de empresas e proibição de exercício de atividades no país, o que afetam diretamente usuários brasileiros.

As duas propostas preveem sanções a empresas que desrespeitem as legislações, e o PL 2768/22 se inspira nas sanções previstas no DMA. Além disso, ambas possuem um órgão responsável pelo enforcement das legislações. Mas enquanto o DMA define a Comissão Europeia, um órgão supranacional, como ente responsável pela regulação do Ato, o 2768/22 propõe alterações legislativas, a fim de tornar a Anatel o ente responsável pela regulação de mercados digitais no Brasil.

Obrigações impostas a empresas detentoras de controle de acesso

O DMA prevê inúmeras obrigações a empresas consideradas “controladores de acesso”, tais como (i) as executadas pelas próprias empresas (art. 5°); (ii) as suscetíveis a especificação futura (art. 6°); (iii) as suscetíveis a especificação futura (art. 7°); (iv) as de comunicar possíveis atos que porventura levem a concentrações de mercado (art.14); e (v) de auditoria (art. 15°). Além disso, o art. 8° traz disposições sobre o cumprimento dessas obrigações e o art. 12° dispõe sobre atualização dessas obrigações aos controladores de acesso.

No caso do PL, em seu art. 10, a proposta define obrigações previstas pela legislação. Destacam-se o fornecimento de informações solicitadas pela Anatel; a não recusa de provisão de acesso à plataforma digital por usuários profissionais; possíveis medidas de mitigação de eventual abuso de poder econômico; entre outras.  Além disso, o PL permite que se tenha margem para que a Anatel possa vir a impor novas obrigações, conforme o art. 3°.

Ambos impõem obrigações parecidas em dispositivos das legislações, mas o DMA impõe maior número de obrigações a empresas detentoras de “controle de acesso”, mas o 2768/22, além de especificar algumas obrigações, também deixa em aberto para que novas obrigações possam vir a ser definidas pela Anatel.

Exceções a medidas obrigacionais impostas

O DMA prevê a possibilidade de aplicação de exceções a obrigações impostas pela legislação, tais como a suspensão das obrigações (art. 9°) e a isenção por motivos de saúde pública e de segurança pública (art. 10). Já o PL não prevê nada sobre este ponto.

Meio de combate à concentração de mercados

O DMA é claro ao definir a Comissão Europeia como ente para regular o Ato, tal como é previsto entre os art. 16 a 31, em que dispõe sobre as responsabilidades do ente para a fiscalização do DMA. Na proposta do PL, o art. 13 dispõe sobre combate a formas de concentração econômica no mercado digital e, de acordo com o PL, tanto a Anatel como o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) seriam entes incumbidos de adotar procedimento para evitar possíveis concentrações de mercado. Até o presente momento, essa questão é um pouco nebulosa entre os parlamentares e autoridades governamentais que têm se debruçado no tema.

Ambos dispõem que haverá um ente para regulação das legislações. Mas enquanto no DMA já há um entre criado para fiscalização, a Comissão Europeia, no 2768/22 não há criação de ente algum, mas, sim, ampliação de competências da Anatel e possível atuação do CADE.

Além de tudo isso, cabe ressaltar importantes pontos do DMA que não são previstos na proposta no Congresso Nacional: a necessidade de apresentação de relatórios (art. 12); formação de um Grupo de Alto Nível (art. 40); a possibilidade de ações coletivas (art.42); e o período para que haja reexame da legislação (art. 53).

Como ponto que se destaca no PL 2768/22 e que não há correspondente no DMA cabe mencionar a criação do Fundo de Fiscalização das Plataformas Digitais (FisDigi), que terá como objetivo o fomento ao “desenvolvimento de produtos e serviços digitais inovadores” e que terá como fonte (i) a taxa de fiscalização das plataformas digitais, que será paga anualmente; (ii) previsões no Orçamento Geral da União; (iii) multas aplicadas sobre empresas; (iv) entre outros meios.

Percebe-se que o PL 2768/2022 se inspirou de fato na proposta legislativa da União Europeia, mas o texto da proposta no Congresso Nacional deve passear por consideráveis modificações, devido à complexidade do tema. Ademais, é importante levar em consideração que o sistema jurídico e a realidade dos negócios não são iguais no Brasil e na Europa. Em razão disso, é fundamental que haja um debate abrangente e plural, com participação ativa da sociedade e das empresas que poderão ser reguladas, pois esta proposta tem o poder de afetar direta e consideravelmente os negócios e a vida de brasileiros, que formam um dos principais mercados globais da economia digital.

 

 

 

 

Por Brunno Carmona Calado é pós-graduado em Relações Internacionais com ênfase em Direito Internacional, com MBA em Economia e Gestão. É coordenador da área de Relações Governamentais do Almeida Advogados.

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