Opinião – O prazer de apontar o dedo

Acho até compreensível que existam pessoas que se sintam sinceramente ofendidas com a estampa de uma roupa – mas a motivação da maioria não é esta. Escreve Luciano Trigo.

20/09/2023 08:15

Consultei um amigo judeu sobre o assunto, e ele também achou ridículo o cancelamento. “As pessoas estão muito sensíveis”, resumiu

Reprodução Instagram.

A rede de lojas Riachuelo colocou à venda um conjunto feminino formado por uma camisa e uma calça, de tecido similar ao linho, com listras verticais em branco e azul. Alguém se sentiu ofendido, por associar a peça aos uniformes usados pelos judeus nos campos de concentração. A crítica à loja viralizou, e a Riachuelo achou melhor se ajoelhar no milho. Retirou a peça de circulação e divulgou a seguinte nota:

“Nós, da Riachuelo, prezamos pelo respeito por todas as pessoas, e esclarecemos que, em nenhum momento, houve a intenção de fazer qualquer alusão a um período histórico que feriu os direitos humanos de tanta gente. [grifo meu]

“A escolha do modelo das peças e da cartela de cores realmente foi uma infelicidade, e gostaríamos de reforçar que todas as peças já estão sendo retiradas das nossas lojas e e-commerce. Entendemos a sensibilidade do assunto, agradecemos o alerta trazido pelos nossos consumidores e pedimos desculpas a todas as pessoas que se sentiram ofendidas pelo que o produto possa ter representado.”

A linguagem da nota é reveladora dos tempos estranhos que vivemos: ao mesmo tempo em que exagera a gravidade da venda do conjunto listrado, diminui a gravidade do Holocausto. Na minha opinião, reduzir a tragédia inominável do genocídio nazista a um período em que “direitos humanos de muita gente” foram feridos é muito mais ofensivo que vender um modelo de roupa com listras azuis e brancas.

Vários aspectos a considerar aí. Acho até compreensível que existam pessoas que se sintam sinceramente ofendidas com a estampa de uma roupa – mas a motivação da maioria não é esta: é o prazer de apontar o dedo.

A falta de senso de proporção é um dos traços marcantes e distintivos da cultura do cancelamento, que costuma equiparar coisas muito diferentes – um elogio a um assédio, ou uma brincadeira a uma agressão.

Diante de qualquer oportunidade de ostentar virtude destruindo reputações alheias, o cancelador ignora nuances, tratando tudo como crime hediondo. No caso em tela, o cancelador se comporta como se colocar à venda um conjunto listrado de azul e branco fosse ato equivalente a vender roupas estampadas com uma suástica. Não é.

Episódios assim já se tornaram rotineiros, e o roteiro é bem conhecido: à gritaria e à corrente de ódio do bem nas redes sociais, segue-se um constrangido pedido de desculpas; o cancelado, por medo das milícias digitais, abaixa a cabeça, e os canceladores, felizes, partem em busca de outro alvo.

Pois bem, na minha opinião parece óbvio que a intenção da Riachuelo não foi imitar o uniforme dos campos de concentração. Foi, na pior das hipóteses, uma coincidência infeliz. Mas modelos de roupas com cores e estampas similares já foram vendidos aos montes, e isso nunca foi um problema. Aliás, consultei um amigo judeu sobre o assunto, e ele também achou ridículo o cancelamento. “As pessoas estão muito sensíveis”, resumiu.

Eu diria que, neste episódio, 99% das pessoas que aderiram ao cancelamento jamais associariam o conjunto listrado ao uniforme dos campos de concentração se não fossem provocadas pela denúncia. Em tempos normais, se alguém fizesse essa associação, simplesmente descartaria comprar a peça, no máximo. Ou usaria o conjunto assim mesmo, como homenagem às vítimas do Holocausto, por que não?

Mas não vivemos tempos normais. Hoje qualquer coisa que se diga ou faça está sujeito ao escrutínio dos batalhões da virtude, de gente que descobriu no ato de apontar o dedo sua razão de viver. Gente que, aliás, enviaria sem pestanejar seus adversários políticos para campos de concentração, por não reconhecer neles qualquer humanidade.

Aliás, por que não pedir o cancelamento do uniforme da seleção argentina de futebol, que também é listrado de azul e branco? Ou que tal cancelar as camisas pretas, que podem ofender a memória das vítimas dos fascistas italianos? Os qualquer conjunto da cor laranja, por lembrar os uniformes dos prisioneiros de Guantánamo?

Se incluirmos na conta os mortos pela fome na China de Mao e no Holodomor, as vítimas de regimes comunistas também se contam aos milhões: isso seria justificativa para denunciar e proibir a venda de roupas vermelhas? É óbvio que não.

Há maneiras mais dignas, úteis e eficazes de defender a memória dos milhões de judeus assassinados pelos nazistas do que lacrar nas redes sociais contra uma loja de departamentos.  Meu palpite, aliás, é que muitas pessoas que aderiram ao cancelamento da Riachuelo também aplaudem políticas e decisões contrárias ao povo judeu e ao Estado de Israel – e não enxergam aí nenhuma contradição.

Isso porque elas não estão preocupadas com a memória das vítimas do Holocausto coisa nenhuma: querem apenas lacrar nas redes sociais e aderir ao linchamento da vez. A lacração é uma droga pesada.

Mas, ainda que proporcione prazer momentâneo (como todo vício), o vício de apontar o dedo acaba se voltando contra o viciado. Como já escrevi aqui mais de uma vez, quem com lacre lacra com lacre será lacrado. É questão de tempo.

 

 

 

 

 

Por Luciano Trigo é escritor, jornalista, tradutor e editor de livros. Autor de ‘O viajante imóvel’, sobre Machado de Assis, ‘Engenho e memória’, sobre José Lins do Rego, e meia dúzia de outros livros, entre eles infantis.

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