A luta do identitarismo é a contrária: obrigar as pessoas a serem julgadas pela cor de sua pele, gênero, orientação ou etnia, e não pelo conteúdo de seu caráter. Escreve Gustavo Castañon.
04/10/2023 17:21
“No fim, chegamos ao ponto de termos movimentos de minorias que pregam um mundo que é o exato oposto ao mundo sonhado por Gandhi ou Luther King”
É comum ouvirmos de pessoas que se consideram de esquerda que o assim chamado “identitarismo” seria uma abordagem “liberal” e “individualista” da luta de minorias. Nada poderia ser mais equivocado. O identitarismo é essencialmente uma rejeição a todos os princípios básicos do liberalismo político, seja quando aparece como movimento de identidade de maiorias, como no nazismo e nos atuais movimentos de identidade europeia, seja quando aparece como movimento de identidade de minorias.
Sua característica básica é a de se rebelar contra a ideia de direitos iguais e universais baseados numa natureza humana, naquilo que teríamos em comum, buscando direitos distintos para sua identidade baseados em alguma diferença essencial ou construída. Ou seja, identitarismo é a crença de que você faz parte de uma identidade essencialmente distinta das outras identidades humanas e que, portanto, tem direitos exclusivos que as outras não têm.
É daí que distinguimos dois tipos de identitarismo: o essencialista, geralmente baseado numa abordagem biológica que defende um fundamento genético dessa diferença que sustentaria as diferenças de direitos (movimentos raciais antimiscigenação, p.ex.), e o construtivista social, relativista e que defende não haver nada universal ou comum à espécie humana, já que tudo seria socialmente construído (como o movimento queer ou o pós-colonialista).
Ambas as versões de identitarismo são profundamente antiliberais e tentam destruir o valor do indivíduo, suas capacidades e méritos, como fundamento dos direitos. Assim transfere, méritos e direitos, para a dimensão do grupo identitário. É por ser membro de alguma identidade que você tem algum direito, não por seus méritos e capacidades individuais. Como se não bastasse, o identitarismo pós-moderno, construtivista social, ainda agrega a essa destruição do sujeito o irracionalismo antimoderno.
O casamento perfeito deste último com o neoliberalismo não vem de um suposto “liberalismo”, mas de seu efeito prático de fragmentar uma sociedade em mil pedaços e destruir as identidades nacionais, sendo a contraparte cultural ao processo de destruição do Estado. Ele é financiado brutalmente por fundações como a Ford ou a Open Society e bancos como o Itaú e recebe espaço maciço na grande mídia não por ser liberal, menos ainda por ser de esquerda, mas por ajudar a transformar um povo num aglomerado de mil identidades fragmentadas e inimigas.
Nessas identidades, a única coisa que sobra de concreto é o ajuntamento de meros consumidores pauperizados que choram pela morte do rei de Wakanda e vibram com o empoderamento identitário na Inglaterra vitoriana das séries da Netflix enquanto suas filhas estão condenadas a trabalharem como escravas para um aplicativo que cumpre todos os pré-requisitos de representatividade em suas campanhas de marketing e talvez até em seu RH.
No fim, chegamos ao ponto de termos movimentos de minorias que pregam um mundo que é o exato oposto ao mundo sonhado por Gandhi ou Luther King. Em seu mítico discurso de 63, King declarou para a eternidade: “Eu tenho um sonho, de que minhas crianças um dia viverão em uma nação onde não serão julgadas pela cor da pele, mas pelo conteúdo do seu caráter”.
A luta do identitarismo é a contrária: obrigar as pessoas a serem julgadas pela cor de sua pele, gênero, orientação ou etnia, e não pelo conteúdo de seu caráter.
Por Gustavo Castañon é professor de Filosofia e Psicologia na Universidade Federal de Juiz de Fora. Costuma fazer reflexões diárias sobre política ou filosofia no X e no Facebook.