Opinião – Autoritarismo e corporativismo no Brasil do século XXI

No Brasil de hoje, na ânsia por protagonismo internacional, a preferência da república corporativa tem sido por “democracias” como a Rússia, a Venezuela, a China. Escreve Eiiti Sato.

09/10/2023 06:07

“Das grandes democracias do mundo, as autoridades esperam apenas o dinheiro”

Divulgação/reprodução.

Pode-se dizer que o atual modelo político brasileiro, implantado sobre- tudo a partir de 2002, pode ser chamado de república corporativa ou sindical e, em vários aspectos, constitui-se numa versão do século XXI do Estado Novo, que Getúlio Vargas tentou implantar há quase cem anos atrás. Uma observação dos acontecimentos e da forma como tem sido empregado o termo “democracia”, mostra que o modelo político brasileiro de hoje possui vários elementos do Estado Novo: 1) a centralização do poder pelo Presidente da República; 2) a governança exercida por meio das corporações sindicais, aos quais, na versão do século XXI, foi adicionado também as ONGs; 3) a retórica oficial na defesa do “pobre”, tal qual no Estado Novo quando a retórica marcante de Ge- túlio Vargas se iniciava dirigindo-se “aos trabalhadores do Brasil”.

O Estado Novo na década de 1930

A tentativa de implantação do Estado Novo por Getúlio Vargas seguia a tendência por regimes autoritários inspirados no prestígio desfrutado pelo nazismo na Alemanha e pelo fascismo na Itália na década de 1930. A Constitui- ção Brasileira de 1937 foi chamada de “Polaca” porque guardava muitas semelhanças com a Constituição Polonesa promulgada em 1935, que também era marcada pela centralização do poder em torno do governante e pelo entendi- mento de que o sistema político deveria estar assentado sobre as corporações econômicas e sociais. O fato é que, no ambiente da grande crise da década de 1930, os regimes autoritários ganhavam prestígio, enquanto a democracia liberal era questionada em toda parte sob o argumento de que as instituições liberais eram ineficazes naquela conjuntura de crise, tornando as várias formas de autoritarismo uma tentação virtualmente irresistível.1 Nesse ambiente, enquanto nuvens carregadas se acumulavam no ambiente da política internacional,

países como o Brasil desenvolviam políticas de aproximação com a Ale- manha e com a Itália. Dados extraídos dos Anuários Estatísticos do IBGE mostram que as exportações brasileiras de algodão para a Alemanha passaram de 11,7 mil toneladas em 1933 para 288,3 mil toneladas em 1941.2 Os dados comparativos do comércio brasileiro com os EUA e com a Alemanha revelam o peso da influência da Alemanha nazista no Brasil.

Comércio Exterior do Brasil com os EUA e com a Alemanha (%)

 

    IMPORTAÇÃO DE ————————-EXPORTÇÃO PARA

Além da crescente importância do comércio com a Alemanha nazista, a influência do fascismo na política brasileira também era crescente.3 O Integra- lismo nasceu no início dos anos 1930 em torno de um grupo intitulado Ação Integralista Brasileira, liderado por Plínio Salgado. O movimento tinha como objetivos a promoção do sentimento nacionalista e a construção de uma “democracia corporativa” no Brasil, por meio de um governo fortemente centralizador. Foi nesse ambiente que a constituição brasileira de 1937 foi concebida. No entanto, com a derrota do nazismo e do fascismo, produziu-se a constituição de 1946 no Brasil que, na essência, recuperava as tradições liberais e democráticas praticadas na política brasileira desde o Segundo Império.

A República Corporativa no Estado Novo e no século XXI

Na virada do século XXI, o ambiente internacional não era de crise. Ao contrário, as economias mais dinâmicas expandiam seus mercados valendo-se das oportunidades abertas pelas economias das grandes democracias, que estimulavam a integração econômica internacional, o livre comércio e a inovação tecnológica.4 Na realidade, pode-se dizer que, em larga medida, a formação do modelo político brasileiro corporativo ocorreu em franca dissonância em relação à ordem econômica internacional, uma vez que até mesmo um país como a China, comandada por um Partido Comunista, fortemente nacionalista e autoritário na ordem interna, no plano externo procurava integrar-se cada vez mais à ordem econômica internacional. Por que, em tal ambiente de prosperidade internacional, a política brasileira voltou-se para o protecionismo com forte aversão à integração internacional mesmo à custa de baixas taxas de cresci- mento econômico?

Uma das linhas de explicação está justamente na rejeição ao modelo liberal na ordem política, preferindo o corporativismo semelhante ao do Estado Novo, embora com matiz de esquerda. Com efeito, uma maneira de se tentar compreender as incongruências da política brasileira em relação ao ambiente internacional é revisitando o Estado Novo. Pode-se dizer que, caso o Estado Novo fosse efetivamente implantado, o regime político no Brasil passaria a as- sumir as características de uma república corporativa na qual, além da suprema- cia do Executivo sobre o Legislativo e a subserviência do Judiciário, conforme a Constituição de 1937, os sindicatos, tanto dos trabalhadores quanto patronais, deveriam ter participação ativa no governo. A Constituição de 1937, em seu Artigo 57, criava um Conselho da Economia Nacional, subordinado ao Gabinete do Presidente com poderes que se confundiam com o Legislativo. Esse conselho seria composto de “representantes (de sindicatos de patrões e de emprega- dos) dos vários ramos da produção nacional”.5 O Artigo 61 daquela constituição estabelecia uma ampla gama de tarefas e de funções para esse Conselho, que ia desde a organização corporativa da economia nacional e o manejo do funcionamento de todo o sistema econômico, até a capacidade de produzir leis e normas para a vida econômica, social e política. Além dessa ampla gama de funções – que virtualmente substituíam o Poder Legislativo – o Artigo 63 dizia que esse Conselho “mediante plebiscito … poderia legislar sobre algumas ou sobre todas as matérias de sua competência”.

O corporativismo na política brasileira do século XXI

No Brasil do século XXI, não houve uma nova constituição. Houve apenas um processo sistemático de adoção de novas práticas na política. A Constituição de 1988 não foi substituída, mas foi modificada de forma substancial por cerca de uma centena e meia de PECs ou, em certos aspectos, a constituição passou a ser simplesmente descumprida, como foi o caso do abandono do princípio da independência entre os Poderes.6 Nessa ordem política, o avanço contínuo do Executivo sobre os demais poderes da República ocorreu principalmente por meio do uso dos recursos financeiro do Estado. As posições no Poder Executivo, passaram a ser ocupadas por sindicalistas (de empregados, de empregadores ou de funcionários públicos com atuação sindical) e também por ativistas de causas sociais, religiosas ou ambientais (ONGs). Nesse quadro, tendo em vista o sentido corporativo da ordem política que se instalava, a corporação mais poderosa de todas – a da classe política, composta por deputa- dos, senadores e lideranças partidárias – entendeu que era chegada a hora de ocupar postos no governo que, afinal, possui as chaves dos cofres do Tesouro Nacional. Assim, enquanto o Legislativo perdia força, o Executivo se transformava em verdadeiro “patrão”, uma vez que, de acordo com a sabedoria popular “quem tem o dinheiro é quem manda”.

Em termos de administração pública, o ativismo político passou a ser a competência exigida para a ocupação de cargos públicos, mesmo em áreas que demandam conhecimentos especializados. Ou seja, acima de qualquer competência ou de qualquer conhecimento obtido por meio de longos estudos ou de experiência acumulada, estava a necessidade de satisfazer o apetite dessas corporações para assegurar a “governabilidade”. Deputados e senadores deixaram de ser legisladores, passando a se ocupar de ministérios, de agências governamentais, e de empresas estatais que manejam vultosos recursos. A Ciência Política brasileira, por sua vez, deu a essa forma decadente de democracia o pomposo nome de presidencialismo de coalizão. Em termos de teoria política, o conceito de representatividade deixou de ser associado a preferências ideológicas ou a identidades regionais e locais. Ser conservador, liberal, ou socialista deixou de ser relevante para a prática política. A representatividade passou a ser apenas um elemento político associado ao ativismo sindical, social ou religioso – um ativismo, por sinal, pago com dinheiro público.7 Atualmente, sem qualquer constrangimento, autoridades governamentais deixam claro que ministérios e outras instâncias públicas passaram de organizações voltadas para a realização de ações e obras de interesse para o bem comum para se tornarem simples moedas de troca do jogo político. “Reformas ministeriais” passaram a ser apenas um “lance” no jogo de acomodação de lideranças políticas insatisfeitas, havendo até deputados e senadores já “ministeriados” que permaneceram por semanas sem saber que ministérios iriam ocupar. Nessa república corporativa, o entendimento é o de que a condição de deputado, de senador, ou de liderança partidária habilita e substitui qualquer competência necessária para gerir ministérios, ou instituições públicas, mesmo que sejam em áreas de grande especialização. A escolha passou a depender apenas do peso e do ruído de seu ativismo político. Um ministério mais importante, com mais recursos, obviamente será destinado a políticos com grande capacidade de influenciar parlamentares e partidos políticos enquanto, um ministério com menos recursos, será destinado a algum ativista ou político cuja influência seja menos abrangente.

Em resumo, a república corporativa sindical do século XXI no Brasil tem muitos elementos que se assemelham ao Estado Novo sonhado por Getúlio Vargas, mas tem revelado ter muito menos do nacionalismo e da ideologia, que davam mais vigor e um sentido mais altruísta aos excessos no manejo do poder. Na década de 1930, a Alemanha nazista e a Itália fascista atraíam o interesse do Estado Novo enquanto, no Brasil de hoje, na ânsia por protagonismo internacional, a preferência da república corporativa tem sido por “democracias” como a Rússia, a Venezuela, a China e até a Coréia do Norte. Das grandes democracias do mundo, as autoridades esperam apenas o dinheiro.

 

 

 

 

 

Por Eiiti Sato, é professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília desde 1983. Foi Diretor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília

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