Opinião – Público e privado: a confusão patrimonial que persiste no Brasil

O que é público e de todos deve ser instrumentalizado única e exclusivamente para a finalidade a que se destina: a satisfação de necessidades coletivamente. Escreve Ana Lucia Pretto Pereira.

10/10/2023 06:01

“Ao estatismo brasileiro o que tem faltado é uma identificação maior com a realidade nacional e com as necessidades populares”

Fachada do Congresso Nacional, em Brasília. Foto: Antônio Cruz/ Agência Brasil

O primeiro livro que me recordo de ter lido na infância foi O Pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry. Às vezes, porém, penso estar confundindo, tendo sido, na realidade, O Menino do Dedo Verde, de Maurice Druon. Por outro lado, lembro-me perfeitamente bem do primeiro texto que li após o ingresso na Faculdade de Direito: O Jardim e a Praça: ensaio sobre o lado ‘privado’ e o lado ‘público’ da vida social e histórica, de Nelson Saldanha. O texto havia sido indicado como leitura obrigatória pela então professora de Teoria Geral do Direito Privado, Carmem Lucia Silveira Ramos.

Em O Jardim e a Praça, Saldanha faz profundas reflexões sobre a preservação da individualidade e da vida privada, do “dispor familiar”, em um contexto de crescentes exigências de participação dos indivíduos em espaços públicos. Discorrendo sobre os diferentes âmbitos de ação dos indivíduos no mundo da vida (domésticos e públicos, bem como a permeabilidade entre ambos), o autor pontua o seguinte: “Se na utopia de Campanella os trajes das pessoas eram padronizados por motivos éticos, nas sociedades massificadas de nosso século a perda da distinção entre as duas dimensões – ou o sacrifício da dimensão privada – tem levado inclusive ao cancelamento da tradicional diferença entre o traje de casa e o de rua. O que tem suas implicações e suas consequências”.

Uma das consequências apontadas pelo autor, ao avançar no argumento e refletir sobre características privatistas e publicistas da experiência brasileira, é a aproximação entre essas duas esferas e, acrescento, a confusão patrimonial dela decorrente. Confusão essa que, provavelmente, cada um de nós é capaz de relatar tendo como base a própria experiência. Eis uma delas.

Quando atuava como estagiária na Procuradoria da República no Estado do Paraná, lembro-me de uma colega de estágio imprimindo a sua monografia de conclusão de curso na impressora da sala de estagiários. Anos mais tarde, uma ex-colega de faculdade, servidora no Tribunal de Justiça, pediu-nos, pelo e-mail institucional do gabinete, o envio das fotos de uma festa da qual havíamos participado. Ainda outro dia, outra ex-colega de faculdade, hoje juíza, utilizava a plataforma online do Tribunal de Justiça para participar, em videoconferência, de um clube de literatura. E, mais recentemente, um ex-aluno, membro do Ministério Público, distribuiu aos colegas de turma, por seu e-mail institucional, a versão em pdf dos textos utilizados para discussão no curso de mestrado. Na mesma oportunidade, outro ex-aluno reclamava que os e-mails institucionais da procuradoria ministerial não funcionavam direito, pois o sistema apontava, com frequência, sobrecarga de dados.

Atualmente, em tempos de atuação profissional a distância, acabamos aprendendo como funcionam a implantação e a operacionalização de plataformas virtuais de comunicação. Sabe-se que a capacidade de armazenamento de dados para o uso de tais plataformas é limitada, sendo preciso fazer a compra de espaço livre em servidores; a internet necessária para o suporte de plataformas virtuais deve ser rápida, sendo, muitas vezes, necessário adquirir serviços de rede mais sofisticados, para um bom funcionamento; o gerenciamento e apoio técnico dessas plataformas depende de pessoal especializado e, por consequência, de pagamento por seus serviços. Qualquer cidadão que paga estruturas dessa natureza com dinheiro do próprio bolso (empresários, profissionais liberais) sabe, com absoluta clareza, o custo de tudo isso.

Como se percebe, a confusão entre o que é público e o que é privado, além de existir na sociedade brasileira há séculos, está impregnada na cultura e na (insuficiente) educação encontradas em diferentes nichos e níveis sociais. Nelson Saldanha, com Sérgio Buarque de Hollanda e Gilberto Freyre, afirmou: “O predomínio do senso privado, no Brasil, há de ter sido em grande medida predomínio do personalismo, inclusive pela larga presença das estruturas feudais em nossa história social. Personalismo nas alianças políticas e nas adesões partidárias; personalismo também na secular tendência a confundir instituições com pessoas”. É de se ponderar que a dívida pública federal brasileira certamente não está a cada ano maior (atualmente, acima de 6,2 trilhões de reais) em razão de um crescimento que não acompanha resultados de arrecadação. Justifica-se, por outro lado e em alguma medida, sobre um reiterado e generalizado descontrole e desvio de finalidade no uso de recursos públicos limitados, os quais incluem: tempo, pessoal e dinheiro.

O Brasil é um “país rico” mas, infelizmente, não é um “país de ricos”. O que é público e de todos deve ser instrumentalizado única e exclusivamente para a finalidade a que se destina: a satisfação de necessidades coletivamente acertadas e a realização de interesses de natureza pública. Em última análise, trata-se de cumprir o pacto político e social que busca conciliar as necessidades e os interesses de um país enormemente plural, como o Brasil, e que consiste na Constituição Federal. Ali se encontram, por exemplo, princípios de probidade no agir público administrativo, que devem ser respeitados. Para concluir, as mesmas conclusões de Saldanha no texto em referência: “O que tem faltado, ao privatismo brasileiro, é uma delimitação histórico social, que deveria provir do espírito público e que temperaria e reordenaria suas manifestações. Ao estatismo brasileiro o que tem faltado é uma identificação maior com a realidade nacional e com as necessidades populares – raramente consultadas –, de onde lhe proviria uma maior substancialidade histórica e também uma flexibilidade mais eficiente: tem-lhe faltado ser publicismo”.

 

 

 

 

Por Ana Lucia Pretto Pereira é mestre e doutora em direito constitucional, advogada e professora, autora de “Atividade Política Judicial: ensaio de fundamentação”, publicado pela Editora da Universidade de Brasília (2023), dentre outros livros.

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