Opinião – De onde virão os recursos para compensar estados e municípios pela reforma tributária?

Para a reforma tributária ser benéfica ao país, ela precisa ser melhor do que o sistema atual acrescido dos custos de transição do regime antigo para o novo. Escreve Adolfo Sachsida.

09/11/2023 08:19

“Se os custos de transição forem muito elevados, é melhor continuar no sistema atual”

Economista do governo anuncia a transição tributária. Foto: James Tissot/Domínio público.

“Any plan conceived in moderation must fail when the circumstances are set in extremes.”
(Klemens von Metternich)

Esse texto não tem por objetivo realizar nenhuma crítica a reforma tributária. Aqui elaboro uma pergunta honesta para contribuir com o debate de ideias: de onde virão os recursos para compensar estados e municípios pela reforma tributária?

Respeito muito os meus amigos e colegas na academia e na redação de jornais. O livre debate de ideias é fundamental para a prosperidade de um país. Nesse sentido, as universidades desempenham um papel fundamental ao debater ideias sem ter grande preocupação com sua operacionalização, ou mesmo viabilidade de implementação. Está correto e faz parte do mundo acadêmico olhar para modelos teóricos puros e inferir daí soluções e propostas para melhorar o nível de bem-estar da humanidade. Esse tipo de pesquisa pura apresenta várias vantagens; e, se tudo correr bem, com o passar do tempo as boas ideias vão amadurecendo, vão se firmando no debate acadêmico, chegam então à grande imprensa e aos formuladores de políticas públicas e, às vezes, ganham vida no mundo real.

Em meu tempo como secretário de política econômica, depois como ministro de minas e energia, tive a oportunidade única de notar algo que é óbvio para muitos: não basta uma ideia ser boa, ela precisa ser operacionalmente viável para ser implementada. Ideias sensacionais muitas vezes precisam ser postergadas para outros momentos em que se buscará por graus de consenso que permitam sua aprovação num regime democrático. E aprovação no mundo democrático significa votos suficientes para a aprovação no parlamento. E aqui é preciso ficar clara uma coisa: por mais brilhante que seja uma ideia, ela precisa ser transformada e redigida em formato de lei, e depois aprovada no Congresso Nacional. Esse processo embute consideráveis riscos: a) uma lei mal escrita pode ter resultados opostos ao desejado; b) a lei escrita pode não refletir corretamente a ideia em abstrato; c) o jogo de forças legítimo que ocorre no Congresso pode e irá alterar a redação original do texto; e muitas outras dificuldades e desafios inerentes ao processo de aprovação e sanção de qualquer lei.

Convido o leitor agora a analisar a versão atual da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que tramita atualmente no Senado Federal sobre a reforma tributária. Não há dúvidas de que o sistema tributário brasileiro precisa ser aprimorado, não há dúvidas de que em termos teóricos existem propostas superiores. Mas há, sim, dúvidas legítimas sobre algumas questões simples. Uma delas gostaria de formular neste texto: de onde virão os recursos para compensar estados e municípios pela reforma tributária? Explico melhor no parágrafo seguinte.

Atualmente o governo federal, seguindo a legislação em vigor, está contingenciando recursos para a educação. As últimas informações dão conta de que cerca de R$ 500 milhões foram contingenciados do Ministério da Educação com efeitos sobre bolsas de ensino e pesquisa. Então pergunto: como um país que não tem R$ 500 milhões hoje irá ter R$ 60 bilhões para pagar anualmente pela reforma? Será que não seria mais sensato reduzir esse valor? Ou mesmo colocar um prazo final para esses pagamentos? Quando olhamos as contas públicas, fica fácil notar que incrementar em R$ 60 bilhões o gasto anual trará dificuldades consideráveis para a estabilização da trajetória fiscal com as consequentes deteriorações macroeconômicas que acompanham a piora de indicadores fiscais. Mesmo quem defende a reforma tributária precisa olhar com cuidado essa questão fiscal. Afinal, o problema fiscal advindo de um gasto adicional anual de R$ 60 bilhões (sem checagem alguma da qualidade ou eficiência desse gasto) pode reduzir razoavelmente os ganhos da reforma tributária.

Ao olharmos para horizontes mais longos temos que, nos próximos 20 anos, a reforma tributária custará R$ 790 bilhões com transferências para estados e municípios? Se levarmos em conta os desembolsos da União até 2030, de acordo com as contas de Cristiane Alkmin Schmidt (ex-secretária de Fazenda de Goiás e consultora do Banco Mundial), a reforma tributária em debate no Senado trará um desembolso adicional aos cofres da União de R$ 179 bilhões. Algo como R$ 30 bilhões/ano entre 2025 e 2030. De onde virá esse dinheiro? Sim, eu sei que esse pagamento será feito fora do limite imposto pelas regras fiscais, mas ainda assim esse dinheiro irá pressionar e muito as contas públicas. Temos dinheiro para pagar essa conta? Se não temos dinheiro para gastar com educação, como vamos ter dinheiro para repassar essas somas a estados e municípios, sabendo que parte desses recursos serão gastos inevitavelmente com aumento de folha de pagamento? Ou com outros gastos que dificilmente serão submetidos a grande escrutínio público?

Uma resposta à pergunta que formulei tem sido dada da seguinte maneira: o crescimento do PIB advindo da reforma mais do que compensa esse custo. Vamos supor que isso seja verdade. Mesmo assim os ganhos da reforma se manifestarão no longo prazo, e os custos precisam ser arcados no curto prazo. Será que essas trajetórias convergem? Será que o período de transição no qual dois regimes distintos irão conviver não nos levará para uma trajetória pior no longo prazo? Será mesmo que nenhuma lei adicional criando mais distorções ainda, ou prorrogando a entrada em vigor de 100% da reforma, não serão aprovadas nos próximos anos? Você realmente acredita que, num país com nosso histórico, as leis complementares que sequer foram apresentadas não apresentarão novas distorções? Aliás, quando é que conheceremos o teor das leis complementares às quais são feitas diversas menções na PEC de reforma tributária? É democrático aprovar uma PEC de reforma tributária sem sequer apresentar as leis complementares que lhe darão operacionalidade?

Por mais brilhante que seja uma ideia, transformá-la em lei é algo que apresenta sempre dificuldades e riscos. Devemos ter sempre em mente qual a linha que não avançaremos; qual o limite para, mesmo com certo grau de frustração, evitar o prosseguimento de uma boa ideia que infelizmente foi desvirtuada para um patamar que impede sua aprovação. Então faço aqui outra pergunta: qual o limite fiscal? Qual o limite de exceções? Qual o limite para além do qual não vale mais a pena apoiar determinada ideia? O formulador de políticas públicas precisa sempre ter em mente esses limites. Além disso, não basta dizer que a reforma tributária aprovada no Congresso é melhor que o sistema atual. Afinal, não estamos saindo do zero. Já existe um sistema tributário funcionando. Para a reforma tributária ser benéfica ao país, ela precisa ser melhor do que o sistema atual acrescido dos custos de transição do regime antigo para o novo. Se os custos de transição forem muito elevados, é melhor continuar no sistema atual. Exatamente por isso é importante responder à pergunta: de onde virão os recursos para financiar os fundos, que custarão centenas de bilhões de reais, criados pela reforma tributária?

Por fim, deixo claro que prefiro sempre uma reforma incremental, passo a passo, sem grandes saltos. Essa estratégia dá tempo para os agentes e para o judiciário irem se adequando às novas leis, formulando novas jurisprudências de maneira gradativa. Saltos grandes sempre têm o risco de não serem acatados nos tribunais, o que pode gerar um contencioso gigantesco (principalmente porque os projetos de lei complementar necessários à reforma não foram sequer apresentados). É sempre boa ideia sair de um lugar ruim e ir para outro melhor. Contudo, no mundo real, por vezes existe um deserto no meio e atravessá-lo não é tarefa trivial. Antes de começar a jornada, é fundamental saber que morrer no meio do deserto é certamente a pior das alternativas. Sim, existem exemplo bíblicos de um povo que atravessou o deserto. Contudo, espero que o formulador de política pública não se iguale ao guia desse povo.

 

 

 

 

Por Adolfo Sachsida possui doutorado em Economia pela Universidade de Brasília (2000), e pós-doutorado na Universidade do Alabama (2005). Também é advogado. Foi ministro de Minas e Energia no período maio a dezembro de 2022 e secretário de Política Econômica, no Ministério da Economia, no período janeiro de 2019 a abril de 2022. Tem experiência nas áreas de macroeconomia, política econômica, política energética e política mineral.

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