Opinião – O ANPP e o requisito da confissão

ANPP é um poder-dever do Ministério Público, negócio jurídico (…) que culmina na assunção de obrigações por ajuste voluntário entre os envolvidos. Escreve Vinícius Segatto Jorge da Cunha.

23/01/2024 05:48

“A recomendação conjunta n. 02/2023 do Ministério Público do Estado de MT”

Reprodução.

Entre o anseio pela celeridade do processo, justiça e as discussões de medidas para enrijecimento de medidas punitivas, surgiu no ordenamento pátrio um instrumento inicialmente regulamentado pelo Conselho Nacional do Ministério Público: o acordo de não persecução penal.

O instituto tem como um dos seus propósitos encerrar eventuais procedimentos antes do início da fase processual junto ao Poder Judiciário, isto é, em nome dos princípios da celeridade e da economicidade, “evitar” uma eventual Ação Penal, efetivando investigações mais “eficientes e desburocratizadas”[1] .

A Resolução 181/2017 do CNMP[2] prevê, então, que nos delitos cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, o parquet pode propor ao investigado acordo de não-persecução penal, contanto que haja, em tese, confissão formal e detalhada do fato e indicação de possíveis provas da consumação. Com a promulgação da Lei n. 13.964/2019, mais conhecida como “Pacote Anticrime”[3], o instituto adentrou em definitivo às hipóteses da justiça negocial, através do artigo 28-A, caput, no Código de Processo Penal.

Vislumbra-se, nessa perspectiva, que a recente disciplina negocial a ser firmada entre o Ministério Público e o indivíduo investigado (assistido por seu defensor) possui diversos pressupostos, a depender: do fato e da imputação; relacionados ao investigado; à polícia criminal; à justa causa e à necessidade de confissão[4], contemplando diversas espécies de delitos, como exemplo, os crimes contra a ordem tributária, crimes ambientais, financeiros, entre outros diversos.

Diferentemente da transação penal e da suspensão condicional do processo – modalidades outras da justiça penal negocial – no acordo de não persecução penal há o cumprimento de condições estabelecidas, havendo grande discussão especialmente no que tange a constitucionalidade ou não do pressuposto da confissão expressa e detalhada para sua efetivação.

Haja vista que, a confissão conforme estabelecida na norma, confronta diversas garantias constitucionais ínsitas ao Autuado, a exemplo do artigo 5º, inciso LXIII da Constituição Federal[5], que consagra o direito ao silêncio (nemo tenetur se detegere), e do mesmo modo, o artigo 8.2, “g” da Convenção Americana de Direitos Humanos que estabelece como garantia judicial do Acusado o direito de não ser obrigado a depor contra si mesmo, nem a declarar-se culpado[6].

Os debates sobre a confissão formal e circunstancial tiveram novos desdobramentos após diversos julgados proferidos pela Corte de Justiça, em especial o julgamento do Habeas Corpus n. 756.907 de relatoria do Ministro Rogério Schietti Cruz, em que se definiu, em suma, que a confissão produz efeitos apenas nesta etapa negocial, não podendo ser utilizada exclusivamente para eventual condenação, no caso de descumprimento do acordo[7] e o Habeas Corpus n. 657.165, de mesma relatoria, em que a Turma decidiu do seguinte modo:

ANPP é um poder-dever do Ministério Público, negócio jurídico pré-processual entre o órgão (consoante sua discricionariedade regrada) e o averiguado, com o fim de evitar a judicialização criminal, e que culmina na assunção de obrigações por ajuste voluntário entre os envolvidos.

  1. A ausência de confissão, como requisito objetivo, ao menos em tese, pode ser aferida pelo Juiz de direito para negar a remessa dos autos à PGJ nos termos do art. 28, § 14, do CPP. Todavia, ao exigir a existência de confissão formal e circunstanciada do crime, o novel art. 28-A do CPP não impõe que tal ato ocorra necessariamente no inquérito, sobretudo quando não consta que o acusado – o qual estava desacompanhado de defesa técnica e ficou em silêncio ao ser interrogado perante a autoridade policial – haja sido informado sobre a possibilidade de celebrar a avença com oParquetcaso admitisse a prática da conduta apurada.
  2. Não há como simplesmente considerar ausente o requisito objetivo da confissão sem que, no mínimo, o investigado tenha ciência sobre a existência do novo instituto legal (ANPP) e possa, uma vez equilibrada a assimetria técnico-informacional, refletir sobre o custo-benefício da proposta (…)[8].

Isto é, de acordo com a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, a falta de confissão durante o Inquérito Policial, não impede que o Ministério Público analise o oferecimento do acordo de não persecução penal, relativizando, de certo modo, a proporção do requisito para celebração do negócio no bojo das investigações e orientando um panorama temporal para sua configuração.

Nessa perspectiva, o Ministério Público do Estado de Mato Grosso, através do seu Centro de Apoio Operacional Criminal e do Controle Externo da Atividade Policial e o Centro de Apoio Operacional da Execução Penal expediu a Nota Técnica n. 01/2023 em 05 de julho de 2023, com fulcro nos julgados acima expostos.

Desse modo, orientado pela pesquisa e premissas desta Nota Técnica, o Ministério Público do Estado de Mato Grosso, através do seu Procurador-Geral de Justiça Deosdete Cruz Júnior e o Corregedor-Geral João Augusto Veras Gadelha, editou a Recomendação Conjunta n. 02/2023, estabelecendo que o membro do parquet pode dispensar o requisito da confissão da prática de infração penal quando analisar as condições para o oferecimento do ANPP, modificando consideravelmente a sistemática do instituto no âmbito do Estado de Mato Grosso[9].

  1. A Recomendação Conjunta n. 02/2023 do MPMT

É evidente que o acordo de não persecução penal pode assegurar respostas céleres quanto aos delitos que a ele se enquadrem – facilitando o funcionamento do próprio aparato investigativo com base naquilo que desejou o próprio legislador ao instituir a proporção mínima das penas passíveis de consenso – reduzindo e otimizando os infindáveis e incontáveis processos judiciais que motivam o contestado abarrotamento do Poder Judiciário.

É indiscutível, portanto, que na balança das negociações no bojo de demandas criminais pairam diversos e profundos princípios constitucionais que dão norte aos atores e participantes dessa composição: nemo tenetur se detegere; presunção de inocência; proporcionalidade; razoabilidade; economicidade; celeridade; eficiência; entre outros.

Por esse ângulo, considerando que o ANPP é uma negociação jurídica propriamente dita em que suas cláusulas são negociadas entre o órgão acusador e o investigado, há que se sopesar a necessidade, a legalidade e a conveniência da confissão “formal, circunstancial e detalhada” no contexto posto, especialmente porque essa exigência perpassa sensível lapso procedimental, na medida em que, há outros requisitos subjetivos a serem avaliados pela discricionaridade e pela independência funcional do membro do órgão acusador no momento do ajuste.

Crê-se que, justamente por essa razão, o Ministério Público do Estado de Mato Grosso ao estabelecer a Recomendação Conjunta n. 02/2023, recomendou em seus artigos 1º e 2º:

Art. 1º O membro do Ministério Público do Estado de Mato Grosso que oficia na seara criminal, quando analisar as condições para oferecimento de Acordo de Não Persecução Penal, pode dispensar, com fundamento nos argumentos que amparam a presente recomendação, o requisito da confissão formal e circunstancialmente da prática de infração penal, tendo em vista o direito constitucional da não autoincriminação disposto no art. 5º, LXIII, da Constituição da República de 1988.

Art. 2º A recusa em propor Acordo de Não Persecução Penal analisada pelo Procurador-Geral de Justiça com base no art. 28-A, § 14, do CPP, será revista, caso esteja fundada exclusivamente na ausência da confissão formal e circunstancialmente da prática de infração penal.

Isso significa, portanto, que no âmbito das investigações de competência do Ministério Público de Estado de Mato Grosso, em que os delitos perquiridos enquadram-se nas condições do ajuste negocial em comento, é atualmente dispensável o requisito da confissão formal e circunstancial pelo autuado para a celebração do acordo, inovando o órgão acusador mato-grossense sobre o tema.

O debate regional adentrou, então, quanto a possibilidade de todo e qualquer membro do Ministério Público, de outras esferas e jurisdições, poder dispensar o requisito ao celebrar o acordo, através de uma proposta apresentada por Conselheiros do Conselho Nacional do Ministério Público durante uma Sessão Ordinária ocorrida em agosto do corrente ano, que espelhou a Recomendação Conjunta n. 02/2023. De acordo com os Conselheiros Rogério Varela e Rodrigo Badaró, existe aparente colisão da norma jurídica do artigo 28-A do Caderno Processual com os princípios constitucionais da presunção de inocência e devido processo legal[10].

A proposta de recomendação ainda pendente de análise e aprovação pelo Plenário do CNMP é, indene de dúvidas, um passo necessário à aplicação do instituto, na medida em que, primeiramente, uniformizaria a nível nacional a dispensabilidade da confissão considerando suas circunstâncias práticas, poupando controvérsias sobre a temática no Poder Judiciário, que delongam a sua aplicabilidade, na contramão da celeridade e eficiência, principais finalidades do ANPP.

Em segundo lugar, certamente estimula significativamente o modelo negocial já que a então imprescindibilidade da confissão formal e circunstanciada é entrave ao Investigado para celebração do acordo, não apenas por dispor e renunciar suas garantias constitucionais, mas, pelas incertezas jurídicas e procedimentais posteriores, tais como se depreende do contexto fático dos Habeas Corpus n. 657.165/RJ e 756.907/SP.

Nesse ponto, aliás, o Ministro Reynaldo Soares da Fonseca do Superior Tribunal de Justiça, ao tratar sobre Justiça Penal negociada na Rede de Inteligência e Inovação do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, alertou quanto a quantidade reduzida de processos resolvidos a partir dos modelos de solução de conflitos, destacando que somente 2,6% dos processos foram resolvidos por ANPP, conforme dados do CNMP[11].

É fundamental destacar, por conseguinte, que a dispensa/prescindibilidade do requisito para a celebração do acordo é necessária às especificidades do sistema jurídico-penal brasileiro; do seu processo investigativo; das esferas do seu sistema carcerário e das escolhas legislativas. Como cediço, o ANPP adveio da importação de sistemas internacionais, assemelhando-se às experiências dos acordos penais francês, alemão e estadunidense, a exemplo do Plea Bargain[12].

Nesse sentido, inclusive, consignou a Nota Técnica n. 01-2023 do CAO Criminal e CAO de Execução Penal do MPMT que “a confissão utilizada no instituto norte-americano decorre de um processo penal já instaurado, perante um juiz competente e em conjunto com outros elementos de provas já existentes, o que não ocorre no Acordo de Não Persecução Penal”.

Ocorre, porém, que é basilar uma filtragem às introduções de modelos estrangeiros ao ordenamento pátrio, porque distintas as realidades fática-jurídicas e, por decorrência lógica, os procedimentos também incompatíveis[13], de modo que, considerando os dados apresentados, o sopesamento dos princípios em jogo e o contexto brasileiro, a dispensa do requisito a critério do membro do parquet é adequada e razoável à verdadeira implementação da Justiça Penal consensual no Brasil.

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[1] BRASIL. Ministério Público Federal. Acordos de Não Persecução Penal. 2ª Câmara de Coordenação e Revisão. Disponível em: <https://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr2/publicacoes/apresentacoes/apresentacao-sobre-acordos-de-nao-persecucao-penal-anpp-e-30-012020_.pdf>.  Acesso em: 15/10/2023.

[2] BRASIL. Resolução n. 181, de 7 de agosto de 2017. Dispõe sobre instauração e tramitação do procedimento investigatório criminal a cargo do Ministério Público. Disponível em: https://www.cnmp.mp.br/portal/images/Resolucoes/Resoluo-181-1.pdf. Acesso em: 15/10/2023.

[3] BRASIL. Lei n. 13.964, de 24 de dezembro de 2019. Aperfeiçoa a legislação penal e processual penal. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/l13964.htm>. Acesso em: 15/10/2023.

[4] VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Acordo de Não Persecução Penal. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022. p. 60.

[5] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

[6] BRASIL. Decreto n. 678, de 6 de novembro de 1992. Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm>. Acesso em: 17/10/2023.

[7] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n. 756.907/SP. Rel. Ministro ROGÉRIO SCHIETTI CRUZ, Sexta Turma, Brasília/DF, 13/09/2022.

[8] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n. 657.165/RJ, Rel. Ministro ROGÉRIO SCHIETTI CRUZ, Sexta Turma, Brasília/DF, 18/8/2022.

[9] BRASIL. Ministério Público do Estado de Mato Grosso. Recomendação Conjunta n. 02/2023. Dispõe sobre a prescindibilidade da confissão para celebração de Acordo de Não Persecução Penal, assim como da comprovação da atividade lícita durante o período de prova. Cuiabá/MT, 13 de julho de 2023.

[10] BRASIL. Conselho Nacional do Ministério Público. Ata n. 12/2023. Ata da 12ª Sessão Ordinária do Conselho Nacional do Ministério Público, realizada em 22/08/2023. Disponível em: https://www.cnmp.mp.br/portal/images/sessoes_plenario/ATA_PLEN_12SO_2023.pdf. Acesso em: 18/10/2023.

[11] BRASIL. Justiça Federal. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Rede de Inteligência e Inovação do TRF da 1ª Região, realizada em 14/09/2022. Disponível em: https://portal.trf1.jus.br/portaltrf1/comunicacao-social/imprensa/noticias/institucional-ministro-reynaldo-soares-da-fonseca-do-stj-fala-sobre-justica-penal-negociada-durante-a-fase-investigativa-na-rede-de-inteligencia-do-trf1.htm. Acesso em: 18/10/2023.

[12] CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira (Et. Al.). ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. 2ª Ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2018. p. 24.

[13] CUNHA, Vinícius Segatto Jorge da. Acordo de Não Persecução Penal. Segatto Advocacia, 2019. Disponível em: <https://www.segattoadvocacia.com.br/artigos/opiniao-acordo-de-nao-persecucao-penal/ >. Acesso em: 20/10/2023.

 

 

 

 

 

Por Vinícius Segatto Jorge da Cunha é advogado.