Para dolarizar a economia argentina, basta então acabar com o curso forçado da moeda nacional. Notem que não é necessário nem mesmo acabar com o Banco Central. Escreve Adolfo Sachsida.
24/01/2024 06:16
“Fazer um filme é como fazer uma viagem de diligência pelo velho oeste. Você sabe como começa, nunca como termina” – Mae West
O presidente eleito da Argentina Javier Milei prometeu acabar com o Banco Central do país e dolarizar a economia. Este texto tem por objetivo mostrar como essa medida pode ser implementada.
Certamente existem diversos caminhos para se dolarizar a economia. Neste texto sugiro uma maneira operacionalmente simples para a dolarização: basta acabar com o curso forçado da moeda. A lei costuma obrigar todo comerciante, todo empresário, todas as pessoas a aceitarem pagamento em moeda nacional. Por exemplo, aqui no Brasil, nenhuma pessoa pode se recusar a receber um pagamento em reais (você pode receber por PIX, por boleto bancário, crédito em conta corrente, etc., mas será obrigado a aceitar que esse pagamento possa ser feito na nossa moeda, o real). É isso que significa curso forçado da moeda: todos são obrigados a aceitarem pagamentos na moeda nacional. Acabar com essa exigência legal leva, na prática, à adoção de moedas mais estáveis.
Para dolarizar a economia argentina, como propôs o presidente eleito Javier Milei, basta então acabar com o curso forçado da moeda nacional (o peso argentino). Notem que não é necessário nem mesmo acabar com o Banco Central. Sem a obrigatoriedade de sua aceitação, a moeda nacional seria obrigada a competir com outras moedas (estatais e privadas). Numa situação como essa, as pessoas e as empresas costumam escolher receber seus pagamentos numa moeda estável (geralmente o dólar). Com o fim do curso forçado da moeda nacional, cada indivíduo e cada empresa serão livres para escolher em qual moeda irão receber seus pagamentos. Se essa escolha recair sobre o dólar, então a economia acabou de ser “dolarizada”. Mas note que qualquer outra moeda pode assumir o protagonismo aqui: assim teremos competição entre moedas. A moeda que proporcionar a maior vantagem (e maior estabilidade) tenderá a ter protagonismo nesse mercado. Note a beleza desse arcabouço: ele expulsa as moedas que os consumidores não aceitam.
Nos anos 1990 a Argentina dolarizou sua economia e deu muito errado. Então, por que tentar essa medida novamente? Esse argumento possui um erro técnico importante: naquela ocasião (Plano Cavallo – 1991) foi fixada por lei uma paridade entre a moeda argentina e o dólar. Isto é, em 1992 a dolarização da economia argentina foi feita sob a taxa de câmbio fixo. Apesar de a medida ter sido celebrada por muitos (inclusive por renomados economistas e instituições internacionais), isso gerava uma necessidade de superávits comerciais para garantir a manutenção da paridade. Necessitava também de o Banco Central argentino ter reservas suficientes para garantir a paridade estabelecida por lei pelo Congresso Argentino. Em 2002, em meio a uma onda de ataques especulativos e sem mais reservas para manter a paridade cambial, foi necessário desvalorizar de maneira brusca a moeda local. O cerne do problema: taxa de câmbio fixa. Note que ao propor acabar com o Banco Central, Javier Milei, deixa claro que não é esse o caminho que irá trilhar.
Alguns analistas têm criticado a proposta de dolarização de Javier Milei com base no argumento de que não existem dólares suficientes na Argentina. Contudo, o problema da quantidade de dólares à disposição do governo para garantir a dolarização da economia só é relevante se o governo adotar uma taxa de câmbio fixa entre o dólar e a moeda local. Com uma taxa de câmbio flexível, não é necessário grande volume de dólares para garantir a dolarização da economia. Com câmbio flexível, o preço do dólar se ajusta. Essa questão já foi exaustivamente debatida em economia quando Hayek argumentava pelo uso do ouro como lastro real para as moedas. Tal como Hayek argumentava, basta 1 grama de ouro para que isso sirva como lastro para trilhões de dólares. Basta que seja possível ter divisibilidade, o que, com o uso de papel moeda (que pode identificar frações de grama de ouro), ou tecnologias como tokens, é claramente possível.
Na realidade, parte expressiva das trocas na Argentina já são feitas em dólares. Com uma inflação anual de 140%, quem pode já se recusa a receber pagamentos em pesos. O peso argentino tem papel fundamental nas trocas envolvendo o governo (seja no pagamento de salários e compras governamentais, seja no recebimento do pagamento de tributos). O problema é que quando o governo anuncia que irá acabar com o Banco Central, isso sugere que ele irá acabar também com a moeda local. Esse movimento faz com que os agentes antecipem o fim do peso argentino e seu valor seja reduzido ainda mais. Por consequência, isso empobrece todos os detentores de moeda local. Esse movimento gera dúvidas sobre qual será a taxa de câmbio a ser aplicada nas obrigações assumidas pelo governo em dólar. Aliás, o governo tem recursos para honrar essas obrigações?
Outra crítica que tem aparecido é que ao dolarizar a economia o governo abre mão da política monetária. Em minha modesta opinião isso é um bônus, e não um ônus. Tanto é assim que no Brasil para evitar o uso político da política monetária aprovamos lei para dar independência ao Banco Central. A função básica de qualquer política monetária é estabilizar a moeda (manter a inflação baixa). Nada melhor para estabilizar uma moeda do que um mercado livre de moedas competindo entre si onde a moeda mais estável possa ser livremente escolhida pelos agentes econômicos. Se essa moeda será o dólar, o euro, o bitcoin, ou qualquer outra, não cabe ao governo decidir.
Muitos argumentam que ter várias moedas circulando na economia gera confusão e perda de eficiência. Não compartilho dessa visão. A rigor, vários mercados mundiais já operam aceitando diversas moedas diferentes em sua negociação, nem por isso iremos dizer que o mercado de commodities (por exemplo) é menos eficiente por aceitar mais de uma moeda como meio de pagamento. A diferença agora é que além das moedas estatais (dólar, euro, etc.) teremos também a competição de moedas privadas (bitcoin, ethereum, tokens lastreados em ativos reais, ouro, etc.). Aliás, desnecessário dizer que o uso de moedas estatais é relativamente novo no mundo. Pelo maior período de tempo na história de nossa civilização as moedas eram lastreadas em ativos privados (ouro e prata por exemplo).
Um problema sério a ser enfrentado será a qual taxa de câmbio se dará a conversão de pesos para dólares. Uma taxa de câmbio flexível (que é a tecnicamente correta) irá levar a grandes desvalorizações da moeda local (e o custo político disso é elevado). Outro problema, como será o pagamento a funcionários públicos e fornecedores do governo: eles podem se recusar a receber em pesos argentinos? Como ficará o balanço dos bancos? Como ficarão as obrigações assumidas em moedas estrangeiras (dada a grande desvalorização cambial que pode ocorrer)? Certamente ocorrerá um grande choque negativo de liquidez na economia. Isso irá derrubar a inflação, mas terá efeitos grandes também sobre a atividade econômica.
No frigir dos ovos, de nada adianta fazer a dolarização da economia se o problema fiscal não for resolvido. Minha leitura é que o problema inflacionário da Argentina decorre de um desajuste fiscal severo. Para pagar suas contas, o governo expande a base monetária e com isso gera inflação. Dolarizar a economia sem retirar subsídios, reduzir gastos do governo e aumentar tributos não me parece ser suficiente para resolver o problema. Foi o excesso de gastos que levou a Argentina a essa situação. O mix de política econômica: dolarizar a economia sem reduzir gastos e subsídios do governo me parece impossível. Afinal o dinheiro para pagar contas precisa vir de algum lugar. Se o governo não terá mais pesos para realizar seus pagamentos, então como ele irá pagar por seus gastos?
Para finalizar deixo uma sugestão ao presidente eleito Javier Milei: aprimorar o aparato legal da Argentina para fortalecer o uso de tokens privados lastreados em bens como moeda. Isso pode ser uma verdadeira revolução com ganhos expressivos para a economia argentina: afinal, significaria o retorno a uma moeda privada com lastro real. Outra boa notícia, se o processo for conduzido corretamente, a inflação na Argentina cai para padrões civilizados em menos de doze meses. O povo, principalmente os mais pobres, que são quem mais sofrem com processos inflacionários agudos, agradece.
Por Adolfo Sachsida possui doutorado em Economia pela Universidade de Brasília (2000), e pós-doutorado na Universidade do Alabama (2005). Também é advogado. Foi ministro de Minas e Energia no período maio a dezembro de 2022 e secretário de Política Econômica, no Ministério da Economia, no período janeiro de 2019 a abril de 2022. Tem experiência nas áreas de macroeconomia, política econômica, política energética e política mineral.