Um país aparentemente aparelhado e dominado pelo consórcio formado entre Lula e o STF deixará que pedidos de impeachment prossigam? Escreve Deltan Dallagnol.
21/02/2024 06:07
“Segundo a regra, é crime de responsabilidade ‘cometer ato de hostilidade contra nação estrangeira, expondo a República ao perigo da guerra, ou comprometendo-lhe a neutralidade’ “
“O que está acontecendo na Faixa de Gaza e com o povo palestino não existe em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu quando Hitler resolveu matar os judeus”. Com essas palavras, Lula jogou o Brasil no fosso do antissemitismo e abriu, possivelmente, a maior crise diplomática da história do nosso país, culminando com uma declaração de que Lula, o presidente do Brasil, é “persona non grata” em Israel até que se desculpe e se retrate. É a primeira vez na história em que isso acontece com um presidente brasileiro.
Aqui no Brasil a fala também foi universalmente repudiada, principalmente pela oposição ao governo Lula no Congresso, que rapidamente entrou com um pedido de impeachment contra Lula. Até o fechamento deste artigo, 113 deputados federais já haviam assinado o pedido, que tem como base justamente a infame e desastrosa comparação de Lula entre Hitler e Israel. O time do Novo, que faz a oposição mais consistente a Lula no Congresso, foi o primeiro partido a fechar questão a favor do impeachment de Lula. Mas o que diz o pedido?
Resumidamente, o pedido de impeachment afirma que Lula violou o artigo 5º, item três, da Lei nº 1.079/50, conhecida como Lei do Impeachment. Segundo a regra, é crime de responsabilidade “cometer ato de hostilidade contra nação estrangeira, expondo a República ao perigo da guerra, ou comprometendo-lhe a neutralidade”. Basta ver a reação negativa universal à fala de Lula, especialmente em Israel, para verificar que Lula de fato cometeu um ato de agressão e de hostilidade à Israel, comprometendo a neutralidade do Brasil em relação ao conflito, perante a comunidade internacional. A neutralidade, aliás, sempre foi uma das marcas registradas da nossa diplomacia.
A compreensão de que houve um ato de hostilidade é reforçada pelo fato de que, ao designar Lula como persona non grata, o governo israelenese não se limitou a reagir à absurda fala de Lula, mas aplicou diretamente uma punição prevista no art. 9º da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, de 1961, a qual prevê que “O Estado acreditado poderá a qualquer momento, e sem ser obrigado a justificar a sua decisão, notificar ao Estado acreditante que o Chefe da Missão ou qualquer membro do pessoal diplomático da Missão é persona non grata ou que outro membro do pessoal da Missão não é aceitável”.
A prática desse ato de hostilidade é inequívoca ou é discutível? Um debate poderá surgir sobre o significado do “ato de hostilidade” previsto no artigo 5º. Lula poderá argumentar, em sua defesa, que uma fala ou discurso não é um “ato” em si, como uma ordem assinada para uma invasão territorial ou para um ataque armado a outro país. Entretanto, a interpretação mais forte, ao meu ver, é a de que palavras, falas e discursos de chefes de Estado e mandatários, como Lula, são revestidas de poder e conteúdo decisório em si mesmas.
De fato, declarações presidenciais são em si atos que causam reações enormes e em cadeia em sociedades, mercados e instituições, mudando a percepção do público, moldando análises na imprensa e informando como outros líderes mundiais veem o Brasil e se posicionam em relação ao país. Por essa ótica, está claro que discursos são mais do que palavras ao vento, e podem, sim, ser considerados “atos”. Falar é uma ação que pode ter graves efeitos. As consequências da fala de Lula no cenário mundial são exemplos suficientes de que essa interpretação é a mais adequada.
Como se sabe, qualquer processo de impeachment tem componentes políticos, além dos requisitos técnico-jurídicos, que já mostramos estarem presentes. A análise política a ser feita envolve não só a ponderação entre, de um lado, a gravidade do ato e, de outro lado, a instabilidade política que um impeachment geraria, mas também considerações sobre as relações políticas no país. Um país aparentemente aparelhado e dominado pelo consórcio formado entre Lula e o STF deixará que pedidos de impeachment prossigam? E no Legislativo, um Congresso formado, em sua maioria, por membros do Centrão cooptados por verbas bilionárias do Orçamento dará andamento ao impeachment de Lula?
O presidente da Câmara, Arthur Lira, é o único que tem o poder de autorizar o processo de impeachment, mas Lira é justamente a liderança responsável pela divisão do butim das emendas bilionárias com os glutões do Centrão. Além disso, Lira está agora mais interessado em fazer a eleição de seu sucessor na Câmara no ano que vem do que em comprar briga com Lula e com o PT. Some-se que Arthur Lira come na mão do STF, que tem contra ele o poder de dar andamento, a qualquer momento, às investigações por corrupção que envolvem o presidente da Câmara. O que Lira fará diante da máquina de pressão que é o STF?
Um processo de impeachment, quase sempre, depende do espírito dos tempos e da situação política, econômica e social do país. Depende de uma conjuntura favorável, como aconteceu com Collor e depois com Dilma. Uma pesquisa Quaest, feita logo depois da fala de Lula, mostrou que 90% dos comentários nas redes sociais sobre a fala de Lula foram negativos. O caso tornou-se o 3º assunto político mais comentado nas redes sociais desde 2023, com mais de 700 mil menções. Outra pesquisa, do instituto Real Big Data, mostra que oito em cada dez brasileiros (83%) rejeitam a fala antissemita e racista de Lula. Será que dessa vez Lula acordou o gigante adormecido?
Por Deltan Dallagnol é mestre em Direito pela Harvard Law School e foi o deputado federal mais votado do Paraná em 2022. Trabalhou como procurador por 18 anos, atuando em várias operações no combate a crimes como corrupção e lavagem de dinheiro. Foi coordenador da operação Lava Jato em Curitiba.