Opinião – O fim da imparcialidade: quando até o chocolate tem partido

Como sociedade, enfrentamos o desafio de desembaraçar a política do tecido de nossas vidas diárias e reconstruir um espaço onde as opiniões possam divergir sem dividir Escreve Daniel Maia Teixeira.

02/05/2024 05:29

“Politização exacerbada atinge desde a vacina até as melodias que ecoam”

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Em um momento tristemente emblemático, percebemos que a política infiltrou-se nas fissuras mais íntimas de nossas vidas cotidianas. Neste período de intensa politização, dissecar o cotidiano torna-se um desafio fascinante, onde até escolher uma camisa amarela pode ser visto como um ato revolucionário ou um alinhamento político involuntário.

Recentemente, a politização alcançou novos patamares com a controvérsia envolvendo uma conhecida marca de chocolates, que escolheu um influente criador de conteúdo para representar seu patrocínio em um grande evento de cultura pop.

Devido ao apoio político deste influenciador nas últimas eleições, a marca enfrentou um boicote promovido por usuários de uma plataforma social, instigados por políticos de direita. Esta situação ilustra como as escolhas de consumo estão cada vez mais carregadas de significados políticos, com marcas e personalidades avaliadas não apenas por seus produtos ou conteúdo, mas também por suas inclinações políticas.

A politização exacerbada atinge desde a vacina que inoculamos em nossos corpos até as melodias que ecoam em nossos ouvidos. Antes, víamos artistas e cientistas como figuras distantes da arena política; hoje, suas opiniões e até suas obras são motivo para escrutínio partidário. A política e a estética estão cada vez mais entrelaçadas, influenciando a maneira como consumimos arte e cultura.

O chocolate que saboreamos e a novela que acompanhamos durante anos, agora são vistos através das lentes da filiação partidária de seus criadores ou protagonistas. A decisão de assistir a um canal de televisão tornou-se um manifesto. Em um mundo onde o meio influencia profundamente a recepção da mensagem, cada escolha de consumo pode se tornar um campo de batalha político.

A ciência, outrora um bastião de neutralidade, também é vítima desse sectarismo. A vacinação, uma conquista da humanidade contra doenças mortais, agora é objeto de debates fervorosos não sobre sua eficácia ou segurança, mas sobre supostas alianças políticas.

Até a informação prática, como a eficácia do Starlink em diferentes ambientes, agora é suspeita de carregar uma agenda política. A liberdade de expressão, um direito tão caro às sociedades democráticas, é coagida pelo temor de ser mal interpretado ou rotulado. Em um ambiente que lembra ficções distópicas, vemos o controle da linguagem influenciar nossas interações cotidianas.

Onde, então, iremos parar? A política, que deveria ser o meio pelo qual buscamos o bem comum, tornou-se um fim em si mesma, fragmentando e até mesmo paralisando a sociedade. Enquanto isso, a comunidade internacional observa com perplexidade nossa incapacidade de dialogar. O nacionalismo, ao colocar interesses próprios em destaque, não deve ser perseguido à custa do bem-estar coletivo.

Como sociedade, enfrentamos o desafio de desembaraçar a política do tecido de nossas vidas diárias e reconstruir um espaço onde as opiniões possam divergir sem dividir, onde ciência e arte possam ser apreciadas por seus próprios méritos. Precisamos, mais do que nunca, reencontrar o respeito mútuo que nos permitirá coexistir — e coevoluir — em um mundo cujas únicas certezas parecem ser a mudança e a complexidade.

 

 

 

 

 

Por Daniel Teixeira é advogado.

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