Opinião – O recomeço da história

Os autoritários se escoram nas imperfeições das democracias liberais (sim, as democracias são imperfeitas!) para relativizar seus regimes. Escreve Leonardo Coutinho.

05/05/2024 14:36

“O que eles rejeitavam era a vida em uma sociedade na qual os ideais haviam, de alguma forma, se tornado impossíveis” – Francis Fukuyama

Francis Fukuyama. Imagem Wikimedia Commons.

Alguns usuários do X ressuscitaram, nos últimos dias, um trecho do livro O fim da história e o último homem, de Francis Fukuyama. O parágrafo, que está se tornando popular nas redes, faz parte do último capítulo da obra lançada em 1992, que discute o mundo pós-Guerra Fria. A vitória do Ocidente capitalista e liberal contra o comunismo soviético. Mal interpretado por muitos, Fukuyama foi criticado em vaticinar que o mundo se tornaria estável e que a democracia havia vencido.

O pensador e professor de Stanford nunca escreveu que o mundo mergulharia na monotonia. Pelo contrário. Por isso, um único parágrafo de seu livro mais famoso reemergiu para explicar, em poucas linhas, o que está acontecendo hoje nos campi de universidades nos Estados Unidos e já ganha imitadores em outras partes do mundo. Segue uma tradução livre:

“Mas supondo que o mundo tenha se ‘enchido’, por assim dizer, de democracias liberais, de modo que não existam tiranias e opressões dignas desse nome, contra quais lutar? A experiência sugere que se os homens não puderem lutar em nome de uma causa justa, porque essa causa justa foi vitoriosa em uma geração anterior, então eles lutarão contra a causa justa. Eles lutarão pelo bem da luta. Em outras palavras, lutarão por um certo tédio, pois não conseguem imaginar viver em um mundo sem luta. E se a maior parte do mundo em que vivem for caracterizada por uma democracia liberal pacífica e próspera, então eles lutarão contra essa paz e prosperidade e contra a democracia”.

Embora este seja o texto destacado nas redes, ele não deveria ser lido e considerado sem o parágrafo seguinte no qual Fukuyama avança em seu raciocínio que vem sendo visto como profético. Na realidade, ele recorreu à história recente para apontar para um futuro que parece ter chegado agora, três décadas depois da publicação de seu livro. Segue uma tradução livre:

“Essa psicologia pode ser vista em ação por trás de surtos como os eventos franceses de 1968. Os estudantes que temporariamente tomaram Paris e derrubaram o General de Gaulle não tinham nenhum motivo ‘racional’ para se rebelar, pois eram, em sua maioria, filhos mimados de uma das sociedades mais livres e prósperas do mundo. Mas foi justamente a ausência de luta e sacrifício em suas vidas de classe média que os levou a sair às ruas e enfrentar a polícia. Embora muitos estivessem apaixonados por fragmentos impraticáveis de ideias como o maoísmo, eles não tinham uma visão particularmente coerente de uma sociedade melhor. A essência de seu protesto, no entanto, era uma questão de indiferença; o que eles rejeitavam era a vida em uma sociedade na qual os ideais haviam, de alguma forma, se tornado impossíveis.”

Fukuyama acertou no prognóstico? Minha opinião é que sim. Conceitualmente sim. E por que conceitualmente?

Sabemos que existem várias tiranias pelo mundo. De Teerã a Caracas, de Pequim a Manágua ou de Moscou a Havana. Mas por que nós ocidentais não lutamos? Ou por que os jovens que vivem em países com as melhores condições de vida e acesso ao que o melhor do mundo pode dar não lutam?

As tiranias estão visíveis aos nossos olhos, mas elas se mimetizaram. Como não há mais os “dois mundos” da Guerra Fria, elas passaram a “fazer parte” do mesmo universo das democracias. Não é raro ouvir de líderes que visitam Pequim que a China nem parece um país comunista. Apenas para focar nos brasileiros, de Lula a Bolsonaro ouvimos a mesma declaração.

Os autoritários se escoram nas imperfeições das democracias liberais (sim, as democracias são imperfeitas!) para relativizar seus regimes. Eles fazem isso todos os dias, por anos a fio. O resultado é o seguinte: “Quem somos nós para criticar Irã, Cuba, Rússia, China, Venezuela, Nicarágua se reprimimos estudantes que apenas querem expressar sua indignação pelo genocídio em Gaza?”

No mesmo X, onde o trecho profético de Fukuyama foi resgatado como diagnóstico da luta existencial da juventude ocidental, é possível ler jornalistas, políticos, acadêmicos, influencers e bocós falando a mesma coisa que líderes autocratas, em um mutirão para desqualificar os americanos, como se isso não desqualificasse a democracia. “Os EUA são a maior democracia do mundo?” “Cadê a turma da liberdade de expressão aqui dessa rede criticando a repressão aos estudantes americanos que protestam em defesa da Palestina e contra Israel??”, pinçando apenas dois comentários reais que passaram pelo feed do X.

Voltando a Fukuyama. Em seu O fim da história e o último homem, ele diz algo ainda mais sólido para entender o que está acontecendo e porque está acontecendo nas economias mais desenvolvidas em países com maior solidez democrática. Ele é enfático em dizer (o que deveria ser óbvio). Nenhum regime político ou socioeconômico agradará a todos. A questão é como cada sociedade pode reagir. E este é um dos pontos centrais que separam ditaduras de democracias.

Nas últimas palavras de seu livro, ele nos deixou um alerta que foi negligenciado. A insatisfação daqueles que vivem em democracias liberais como nos Estados Unidos, por exemplo, não é um atestado de falência democrática, tampouco é resultado “de incompletude da revolução democrática” ou pelo fato de nem todos no mundo terem recebido “as bênçãos da liberdade e da igualdade”.

A insatisfação, escreveu Fukuyama, “surge precisamente onde a democracia triunfou mais completamente”. Algo que parece paradoxal, mas que, de certa maneira, é autoexplicável pelo vazio dos insatisfeitos que é preenchido com causas que possam dar-lhes algum sentido de luta, de legado, de sei lá o quê que possa fazê-los se sentir menos inúteis.Mas não podemos menosprezá-los. Sejam eles mimados, vazios, perdidos ou manobráveis, “aqueles que permanecerem insatisfeitos terão sempre o potencial de reiniciar a história”.

 

Conteúdo editado por:Jônatas Dias Lima

 

 

 

Por Leonardo Coutinho, Escreve semanalmente, desde Washington, D.C.

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