Opinião – A operação no STF é a “lava corruptos”

Para os réus do 8 de janeiro, não há recursos para mais ninguém (…) não há alegação de abusos que será aceita contra ministros, pois são eles que cometem os abusos. Escreve Deltan Dalagnol.

25/05/2024 06:27

“Para os réus do 8 de janeiro, há apenas o amor de seus familiares do lado de fora”

Segunda Turma do STF extinguiu condenação contra José Dirceu por corrupção passiva na Lava Jato.| Foto: Lula Marques/ Agência Brasil

Nesta última terça (21), enquanto eu participava de uma audiência na Câmara dos Deputados sobre os 10 anos da Operação Lava Jato, o Supremo Tribunal Federal (STF) se encarregava de dar mais dois duros golpes contra a operação. Logo após a minha fala veio a primeira notícia: a maioria da 2ª Turma do STF havia decidido extinguir a pena de José Dirceu em um de seus processos da Lava Jato, em razão de um novo entendimento sobre a prescrição da pena. Mais tarde, durante o julgamento do senador Sergio Moro no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que terminaria com a vitória de Moro, o ministro Dias Toffoli anulou todos os atos da Lava Jato contra Marcelo Odebrecht, que ao lado de Lula é um dos maiores símbolos da corrupção exposta pela Lava Jato.

Comecemos por Zé Dirceu, como ele é chamado pela companheirada petista. O resumo da ópera é o seguinte: Dirceu, que havia sido condenado a 8 anos, 10 meses e 28 dias de cadeia por ter solicitado e recebido mais de R$ 2 milhões em propina para facilitar contratos da Petrobras com a empresa Apolo Tubulars, escapou dessa condenação pela simples passagem do tempo, o que no Direito é chamado de prescrição. A prescrição é uma regra legal que limita até quando o Estado pode decidir punir alguém, e quando a pessoa completa 70 anos, todos os prazos prescricionais caem pela metade.

O prazo prescricional no caso de Dirceu é de 12 anos, mas, como ele fez 70 anos em 2016, o prazo caiu pela metade, para 6 anos. Os ministros Ricardo Lewandowski, Nunes Marques e Gilmar Mendes afirmaram que houve prescrição, já que entre a consumação do crime, que eles entenderam ter ocorrido em 2009, quando Dirceu solicitou a propina, e o recebimento da denúncia, em 2016, já teriam se passado mais de 6 anos. Para um desavisado poderia parecer a simples aplicação das péssimas regras que temos sobre prescrição.

Contudo, não é bem assim. O ministro Fachin, que ficou vencido, entendeu diferente, assim como todas as instâncias antes dele. Isso porque, nessa visão, o crime não se consumou em 2009, mas perdurou até 2012, pois Dirceu recebeu propina até esta época. Assim, entre a data da consumação do crime de corrupção, em 2012, e a data do recebimento da denúncia em 2016, passaram-se apenas 4 anos, o que descaracteriza a prescrição. Esse entendimento faz todo o sentido, porque é crime não só pedir mas também receber propina, o que está descrito no artigo 317 do Código Penal. A lei é expressa.

No final, adivinhe qual foi o entendimento que prevaleceu no Supremo? Finja surpresa: o STF fechou os olhos para os pagamentos feitos até 2012 e abraçou uma visão distorcida do Direito que garante a impunidade a Zé Dirceu.

A lógica da impunidade também foi aplicada a Marcelo Odebrecht, o “príncipe das empreiteiras” que se tornou, no auge da Lava Jato, um dos maiores corruptos confessos do Brasil. Ele delatou e expôs crimes gravíssimos de autoridades de todos os escalões da República brasileira. Em uma decisão de 117 páginas, que espelha outras que garantiram a impunidade da própria empreiteira Odebrecht, da gigante J&F e de políticos como Beto Richa, Toffoli não demonstrou nenhum pudor ao anular todos os atos da Lava Jato contra quem mencionou o próprio ministro Dias Toffoli na sua delação. Afinal, foi Marcelo Odebrecht quem revelou para o mundo o codinome secreto de Dias Toffoli nos arquivos da Odebrecht: Toffoli era o “amigo do amigo de meu pai”.

O “amigo”, nas planilhas da Odebrecht, era Lula, é claro: a amizade entre Lula e Emílio Odebrecht, pai de Marcelo e patriarca da família, é antiga e conhecida. Se Lula é o “amigo”, Toffoli é “o amigo do amigo”. De fato, Toffoli foi alçado ao cargo de ministro do Supremo justamente em razão de sua amizade e proximidade com Lula, de quem foi ministro da Advocacia-Geral da União (AGU). Toffoli, aliás, foi advogado do PT e, depois, subordinado a Zé Dirceu na Casa Civil antes de ter alcançado o prestigioso cargo de AGU ou mesmo de ter chegado ao Olimpo como ministro do Supremo. Antes, batia ponto abaixo de Dirceu como subchefe de assuntos jurídicos da pasta. São todos velhos amigos e, enquanto Toffoli limpa a barra de Marcelo Odebrecht, o STF executa a operação Lava Dirceu.

No Supremo, ninguém solta a mão de ninguém, ou, melhor dizendo, ninguém solta a toga de ninguém. Verdade seja dita, alguns ministros resistem à lavanderia da reputação dos corruptos. Contudo, o clube de amigos do PT e de Lula prevalece hoje no tribunal. O codinome “amigo do amigo de pai” nunca fez tanto sentido e pode ser estendido a vários ministros.

Você pode estar se perguntando o que Toffoli disse nas 117 páginas de sua decisão que possa justificar que ele anule todos os atos, processos e condenações da Lava Jato contra o homem que citou ele mesmo, Toffoli, em sua delação premiada, mas no ponto em que estamos, há alguma outra justificativa que não aquela de sempre? Toffoli repetiu os jargões e clichês de suas decisões anteriores para dizer que as supostas mensagens da Vaza Jato comprovaram existir um “conluio” entre juízes e procuradores para perseguir investigados, dentre eles Marcelo. Já cansei de rebater esse argumento esdrúxulo de Toffoli, mas basta dizer que o conteúdo dessas mensagens nunca foi tratado segundo o devido processo legal, que Toffoli e outros ministros “garantistas” do Supremo dizem prezar tanto.

Não: na única vez em que se abriu um inquérito para investigar o conteúdo das mensagens, quando o STJ mandou investigar os procuradores da Lava Jato por eles terem supostamente investigado ministros daquela corte, o inquérito teve que ser arquivado, pois ficou comprovado que a alegação, vejam bem, era falsa. A divulgação tinha sido feita de modo leviano, mentiroso e deturpador por parte da imprensa comprometida com a soltura de corruptos. Por causa dessa brincadeira, temos hoje um condenado por corrupção em três instâncias sentado na cadeira presidencial, que nunca foi absolvido pelo Supremo, e um Zé Dirceu serelepe, que já fala abertamente em voltar à Câmara dos Deputados em 2026.

O que o STF fez, e que, convenhamos, é muito mais fácil, foi selecionar mensagens cuidadosamente editadas e manipuladas por jornalistas militantes e advogados de defesa para usar da maneira que eles quiserem, o que normalmente significa anular processos e condenações, como Toffoli fez agora com Marcelo Odebrecht. Os juízes e procuradores que supostamente trocaram as mensagens nunca, jamais, foram ouvidos, nem tiveram oportunidade de se defender ou explicar seu conteúdo. Mas fazer isso para quê? Apurar os fatos, ouvir testemunhas e colher documentos atrapalharia todos os planos do sistemão. O que está acontecendo, e que o sistemão quer, é uma blindagem geral de todos os corruptos que a Lava Jato tentou punir.

Eu não sei nem por que ainda analiso as decisões do STF e tento entender. As decisões não são jurídicas, são políticas. É ingenuidade pensar diferente. Se fossem jurídicas, iam se aplicar, com muito mais razão, para anular tudo que o ministro Alexandre de Moraes faz. As únicas diferenças são que o ministro Moraes faz cem vezes pior e, no caso dele, está tudo comprovado, basta pegar os autos e ver – isso no caso de se ter acesso aos autos, porque só conhecemos o pouco que foi revelado pelos documentos do Congresso Americano. Ele guarda seus esqueletos a sete chaves no armário do sigilo judicial. Já no caso da Lava Jato, os documentos, os atos e as provas mostram justamente o contrário do que se alega: investigações e processos que seguiram a lei. Contudo, nada disso importa.

Enquanto o STF extingue penas de Zé Dirceu e alivia a barra de Marcelo Odebrecht, os réus do 8 de janeiro, que nem deveriam ser julgados pelo Supremo, amargam penas de 14 a 17 anos de prisão, sem nenhuma perspectiva de terem seus casos reavaliados, anulados ou trancados, como acontece com quem desviou milhões de reais dos cofres públicos. Para os réus do 8 de janeiro, não há recursos para mais ninguém, não há amigo do amigo de meu pai a quem se socorrer, não há alegação de abusos que será aceita contra ministros, pois são eles que cometem os abusos e chamam de justiça e de defesa da democracia. Não: para os réus do 8 de janeiro, há apenas o amor de seus familiares do lado de fora, que sofrem com as prisões, as palavras de apoio da direita e orações para Deus, na confiança de que a justiça divina um dia suplantará a injustiça dos homens.

 

 

 

 

Por Deltan Dallagnol é mestre em Direito pela Harvard Law School e foi o deputado federal mais votado do Paraná em 2022. Trabalhou como procurador por 18 anos, atuando em várias operações no combate a crimes como corrupção e lavagem de dinheiro. Foi coordenador da operação Lava Jato em Curitiba.

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