Opinião – Por que o preço da água sobe nas tragédias?

Preços não são definidos de forma arbitrária e voluntariosa: são informações que guiam o mercado para uma distribuição mais eficaz e racional de produtos escassos. Escreve Luciano Trigo.

 

25/05/2024 08:39

“Segundo a mesma teoria, o governo é uma doença disfarçada de sua própria cura”

Reprodução Instagram.

Em meio à tragédia das enchentes no Rio Grande do Sul, o Ministério Público estadual autuou 65 estabelecimentos por preços abusivos: alguns chegavam a cobrar R$ 80 por um galão de água. Duas pessoas foram presas.

É o tipo de notícia que desperta indignação: somente comerciantes inescrupulosos aumentam o preço da água durante uma tragédia. Compadecidos das vítimas das enchentes, nosso impulso natural é dar razão ao MP e achar a medida punitiva mais do que necessária. A simples ideia de cobrar preços mais altos em meio a um desastre ofende nossos instintos de moralidade e justiça.

Mas existe outra maneira de enxergar a situação. O que vou expor a seguir não é a minha opinião, mas uma teoria econômica desapaixonada, segundo a qual é um equívoco o governo proibir o aumento de preços em situações de calamidade.

Segundo essa teoria, medidas assim acabam se voltando contra a própria população que se pretende proteger. Porque nem sempre a indignação e o conhecimento de como funciona a economia andam de mãos dadas.

Antes, quatro comentários preliminares:

Primeiro, segundo o Artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor, preço abusivo é o ato de “elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços”. Ou seja, o que caracteriza uma alta abusiva de preços é a ausência de motivos cabíveis para a majoração.

Segundo, no caso específico do Rio Grande do Sul, tudo indica que o Estado falhou, pois era seu dever zelar pela manutenção do sistema antienchente criado já na década de 1970 para conter as cheias dos rios Guaíba e Gravataí. Hoje se sabe, por exemplo, que os motores do sistema foram quase todos roubados, e os remanescentes não funcionam, entre outras falhas e omissões graves do governo estadual.

Terceiro, a solidariedade de todos os brasileiros nesta tragédia tem sido imensa. Toneladas de donativos, milhões de reais em doações e o trabalho voluntário de incontáveis heróis anônimos têm contribuído muito para mitigar o sofrimento do povo gaúcho. Acredito que muitos comerciantes de Porto Alegre e outros municípios afetados participam, como cidadãos, dessa corrente do bem, fazendo doações ou mesmo enfiando o pé na lama para ajudar seus conterrâneos. (Nem todos, é claro, são assim.)

Quarto, nessas horas é obrigação do Estado, que arrecada muitos impostos, garantir o suprimento de água potável, de forma gratuita, para toda a população; não é uma obrigação legal da iniciativa privada, embora ela também deva ajudar. Mas é em situações de emergência que um governo demonstra se é um bom ou mau gestor dos recursos que amealhou dos contribuintes.

Pois bem, segundo essa teoria – não segundo a minha opinião, convém enfatizar – em situações de calamidade pública como a que aflige os gaúchos é um erro o Estado intervir para proibir o aumento de preços de itens essenciais, como água engarrafada.

É claro que não é só a água que sobe de preço: alimentos, combustíveis, hospedagem, medicamentos, material de construção, basicamente tudo aumenta. Mas vamos focar na água.

O fato de existirem aproveitadores e oportunistas não muda o fato de que mercado e Estado obedecem a regras e têm deveres diferentes. Quando o segundo interfere no primeiro, geralmente não dá certo.

Preços não são definidos de forma arbitrária e voluntariosa, não são números aleatórios em uma etiqueta: eles refletem as condições existentes de oferta e demanda. São informações que transmitem sinais importantes para compradores e vendedores. Preços guiam o mercado para uma distribuição mais eficaz e racional de produtos escassos. Proibir por lei sua variação mascara esses sinais.

Ou seja, preços altos não são o problema, eles refletem o problema.

Ora, uma tragédia ambiental afeta intensamente tanto a oferta quanto a demanda de produtos e serviços. A oferta diminui, porque enchentes destroem estoques, veículos e estradas, comprometendo a infraestrutura local.

Isso faz com que a provisão normal de água, engarrafada, ou mesmo de torneira, seja reduzida. Com o transporte prejudicado, menos garrafas de água chegam ao comércio das áreas devastadas. O consumo da água de torneira, por sua, vez, se torna perigoso pelo risco de contaminação.

Ao mesmo tempo em que a oferta diminui, a demanda aumenta, por motivos mais do que compreensíveis: pessoas desesperadas tentam garantir sua sobrevivência. Conclusão: se o preço aumenta é porque a garrafa de água passou a ter um valor maior do que tinha antes da tragédia. O mesmo se aplica a muitos outros bens e serviços com demanda alta e oferta baixa em áreas atingidas por desastres. Não parece estar caraterizada, portanto a “ausência de motivos cabíveis” já citada.

Continuando: preços que ficam de repente acentuadamente mais altos sinalizam que a oferta se tornou insuficiente. Eles levam o consumidor a usar com mais parcimônia um recurso que era abundante e se tornou escasso; e incentivam o vendedor a aumentar o seu estoque o mais depressa possível, para atender mais clientes e vender mais, até que o desequilíbrio oferta-demanda seja neutralizado, empurrando os preços para baixo.

Nessa situação, se o governo obriga o comerciante a manter o mesmo preço de uma situação normal, três coisas tendem a acontecer:

Primeiro: o estoque, já reduzido, acabará muito mais depressa. Os primeiros compradores, os que conseguiirem chegar mais depressa nas lojas, se beneficiarão do preço baixo para comprar o máximo de mercadorias que puderem. A maioria ficará sem nada.

Segundo: por sua vez, os vendedores não terão nenhum incentivo para repor os estoques, já que seus custos operacionais e seus riscos também subiram, e se não puder ajustar seus preços todo o processo deixa de fazer sentido econômico para ele. Sem incentivo para aumentar a oferta, pode ser melhor fechar a loja e só reabrir quando o desastre passar.

Terceiro: o surgimento de um mercado negro, à margem da lei, que prejudicará principalmente os mais pobres, já que fatalmente atravessadores comprarão água ao preço tabelado e a revenderão por preços muito maiores.

Segundo essa teoria, não ter nenhuma água para comprar é pior que ter água a um preço mais alto. Preços altos, segundo essa teoria, são menos piores que prateleiras vazias. Segundo a mesma teoria, o governo é uma doença disfarçada de sua própria cura. Contrariar o mercado acaba resultando no agravamento da calamidade e no aumento da injustiça, também segundo a mesma teoria.

Como escreveu o economista Thomas Sowell, as pessoas que defendem o controle de preços como solução em situações de desastre – sejam os legisladores ou os cidadãos comuns que os aplaudem – possuem “indignação de sobra e conhecimento econômico de menos”.

 

 

 

 

 

Por Luciano Trigo é escritor, jornalista, tradutor e editor de livros. Autor de ‘O viajante imóvel’, sobre Machado de Assis, ‘Engenho e memória’, sobre José Lins do Rego, e meia dúzia de outros livros, entre eles infantis.

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