Os dicionários não criam palavras, eles registram as que são usadas pelos falantes e suas variações no tempo e no espaço. Escreve Renato de Paiva Pereira.
05/06/2024 05:25
“Presunção dos jornalistas os impediu de ver a lógica no imexível do Magri”
Quem tem 40 anos ou menos provavelmente não se lembra de Antônio Rogério Magri, que foi Ministro do Trabalho do nefasto governo de Fernando Collor de Mello, de tristíssima lembrança. Como o fato que cito abaixo ocorreu há muito tempo, precisa de uma pequena explicação para entendimento dos mais novos.
O Magri era um sindicalista falastrão que acabou demitido por suspeita de fraudes, mas antes produziu algumas frases curiosas: “a cachorra também é um ser humano”, disse ao ser pego usando carro oficial para levar o animal ao veterinário. Em outra ocasião, tentando filosofar, declarou: “Penso muito durante meus momentos de solidez”.
Mas a que o marcou para sempre foi: “O FGTS é imexível.” Como na época a palavra imexível não era dicionarizada, a imprensa, consultando o Aurélio, ridicularizou o ministro como se tivesse dito uma verdadeira tolice.
Acontece que sem querer o simplório ministro criou um neologismo, que só não estava nos dicionários na época por falta de alguém que o colocasse lá, dado à sua incontestável lógica. Se temos indizível, indisponível, invencível e tantos outros semelhantes, por que imexível parecia tão absurdo?
Os dicionários não criam palavras, eles registram as que são usadas pelos falantes e suas variações no tempo e no espaço. Nada impede que termos ainda não anotados sejam inseridos a qualquer momento, como ocorreu com imexível.
Outro fato aconteceu com o cantor Zezé Di Camargo quando disse em uma entrevista que “desconcordava” de tal ou qual afirmação. A imprensa pegou pesado colocando um sic ao final da frase para dizer que o “erro” era do entrevistado não da revista. Só que não havia engano e o jornalista teve que publicar um “erramos” na edição seguinte.
Teve também um caso aqui de Mato Grosso: a imprensa nacional e a mídia cuiabana desancaram o então deputado federal Xuxu Dal Molin, porque ele ou seus assessores, em um requerimento, escreveram “paralização” com Z e não com S.
Claro que a palavra está escrita de forma errada, mas me parece muito preciosismo dos jornalistas e da imprensa verem nisso um erro grosseiro digno de zombaria.
Da mesma forma que as palavras com Ç e SS, as com S ou Z costumam gerar dúvidas até em pessoas experientes. Não fossem os corretores de texto dos computadores, os erros de ortografia seriam muito mais abundantes.
A presunção dos jornalistas os impediu de ver a lógica no imexível do Magri, os fez apressadamente “sicarem” uma palavra correta do cantor sertanejo e enxergarem um atentado à gramática onde existe apenas um deslize do deputado. (ou seria deslise?)
*Do meu livro “Dez anos em Palavras – Crônicas de um Articulista” – Ed. Íthala – Curitiba.
Errei: alertado pelo leitor Luiz Augusto C.R.da Motta, informo que a música O Neguinho e a Senhorinha foi composta por Abelardo Silva e Noel Rosa (não Noite Ilustrada, como escrevi na crônica anterior) e Chão de Estrelas por Orestes Barbosa e Sílvio Caldas.
Por Renato de Paiva Pereira é empresário e escritor.