No caso de mandatários, mais grave ainda é a censura prévia, pois eles são representantes do povo e a rede social é o melhor instrumento de contato direto. Escreve Karina Kufa.
15/07/2024 05:15
“Todos os excessos devem ser punidos, mas dentro dos parâmetros já fixados pela Constituição”
O mundo moderno nos proporcionou tecnologias avançadas e acesso à informação em tempo real, e, com isso, inegavelmente, também aconteceram prejuízos, como é o caso da desinformação.
A desinformação não é novidade. Antes, contudo, era restrita aos meios de comunicação oficiais, que tinham maior alcance e, por estarem representados por pessoas jurídicas devidamente identificadas, o ofendido tinha maior facilidade para buscar a reparação, seja pelo pedido de resposta, compensação financeira pelos danos morais e materiais sofridos ou mesmo através de punição criminal do jornalista responsável pela fake news.
Ao ofendido sempre se garantiu uma série de formas de defesa, civil e/ou criminal, em observância ao devido processo legal. Por isso, até aqui o judiciário jamais cogitou realizar o controle prévio ou cerceamento da liberdade de expressão e imprensa, que são instrumentos sabidamente antidemocráticos; o controle sempre foi realizado após a ofensa, com todas as garantias constitucionais e de maneira proporcional à agressão.
Da mesma forma, o Governo Federal ainda não havia cogitado controlar a mídia, com exceção de um episódio do Governo da presidente Dilma Roussef: em 2013, o ex-ministro da Secretaria de Comunicação Social, Franklin Martins, defendeu a criação de um marco regulatório para a mídia, e o episódio acabou gerando controvérsias, sendo visto por muitos como uma tentativa de controle da imprensa. Como de costume, a iniciativa não se transformou em medidas punitivas diretas contra críticos.
Nas redes sociais não deveria ser diferente, até porque todos os meios judiciais até então disponíveis se mostravam eficientes, seja com ações cíveis ou criminais. Com a tecnologia, dificilmente um infrator ficará impune, pois seus registros deixam rastros, mesmo após a remoção. A geolocalização é possível de ser identificada através do endereço I.P. (internet protocol), que somente com conhecimento avançado pode ser mascarado.
Nas eleições presidenciais de 2018, entretanto, a Justiça Eleitoral instaurou investigação sobre a suposta utilização de robôs para produção e compartilhamento em massa de fake news contra o presidente Jair Bolsonaro. Depois de mais de 4 (quatro) anos de processo, mesmo sem provas ou condenações, a Justiça Eleitoral passou de uma postura passiva, aguardando a provocação do ofendido, para uma postura mais ativa, fiscalizando e penalizando os propagadores de fake news diretamente, sem a aplicação do princípio da inércia processual ou de jurisdição.
Não estou negando a existência de fake news nas redes sociais; mas sim, defendendo a impossibilidade de o Estado-juiz, que deve sempre agir mediante provocação do interessado, ter o poder de fiscalizar previamente os usuários das redes sociais e criar mecanismos sancionatórios, inclusive por meio de censura prévia a pessoas que utilizam suas redes sociais para falar de política ou criticar os poderes, sejam eles cidadãos ou políticos. Todos os excessos devem ser punidos, mas dentro dos parâmetros já fixados pela Constituição Federal.
No caso de mandatários, mais grave ainda é a censura prévia, pois eles são representantes do povo e a rede social é o melhor instrumento de contato direto e prestação de contas aos seus eleitores. Não estou nem mais falando sobre a imunidade parlamentar, que, a cada ano, vem sendo indevidamente mitigada pelo judiciário. Se o parlamentar não tiver mais o direito de parlar livremente, não estaremos mais diante de uma democracia na forma que a concebemos.
Nas eleições de 2022, assisti candidatos sendo censurados, a partir do bloqueio parcial ou total de suas redes sociais, pela própria plataforma ou por decisões proferidas em inquéritos sigilosos, sem saber o que motivou. Especulava-se que seria pelo compartilhamento de críticas a algumas medidas tomadas mundialmente pelos órgãos públicos durante a pandemia, a despeito de ninguém deter conhecimento suficiente, naquele momento, para afirmar o caminho ideal, sequer a OMS.
As redes sociais democratizaram as eleições, permitindo que lideranças, sem grandes recursos financeiros, pudessem ser eleitas apenas apresentando o seu trabalho e opinião, com um alcance exponencial. O acesso ao poder deixou de ser apenas para as elites políticas, que transferiam a cadeira de pai para filho.
O Judiciário sempre foi o poder que nos deu segurança, pois quando os outros dois não estavam correspondendo ou quando havia um conflito privado sem solução, poderíamos buscar salvaguarda judicial.
Fico realmente preocupada com a imagem que o Judiciário pode passar aos seus assistidos quando começa a assumir um papel que não lhe é garantido pela Constituição, ou quando argumenta que a proteção ao Estado Democrático de Direito lhe autoriza a utilizar instrumentos indevidos, como é o caso dos inquéritos instaurados pelo Supremo Tribunal Federal, sem a provocação do Ministério Público ou previsão legal de competência para tanto, com aglutinação de funções que não lhe são cabíveis, sem contar outras problemáticas de ofensas ao devido processo legal e contraditório.
As eleições de 2024, sem aprovação do Congresso, serão regidas por resoluções do Tribunal Superior Eleitoral, que autorizam o monitoramento e controle direto das redes sociais, bem como sanções gravíssimas para que, supostamente, sejam evitados casos de desinformação.
Na corrida do controle do instrumento mais poderoso, ou seja, da comunicação, Governo Federal, Polícia Federal, Tribunal Superior Eleitoral, Supremo Tribunal Federal e Tribunal de Contas da União estão elaborando convênios entre si e lançando licitações para a aquisição de ferramentas de monitoramento. Empresas de checagem foram criadas pela imprensa e as próprias plataformas tomaram decisões, sem intervenção judicial, para banir ou limitar usuários.
Não há regulamentação alguma pelo Congresso Nacional sobre se e como essas ferramentas poderão ser utilizadas, sequer sobre os limites, o que se torna perigoso considerando que hoje existem ferramentas de venda e uso restritos ao Estado que podem adentrar a esfera de dados pessoais extremamente sensíveis.
Recentemente, a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), órgão ligado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública do Governo Federal, emitiu uma determinação para que o Facebook realize a moderação e remoção de anúncios suspeitos de conteúdo ilegal, destinados a golpes e fraudes contra os consumidores, no contexto da situação de calamidade no Rio Grande do Sul, pelo prazo de 5 dias, sob pena de multa diária de R$ 150 mil. Diante desse cenário, não param questionamentos, como: o que seria desinformação em relação a esse fato específico? Quais são os critérios utilizados pelo Governo Federal para definir o que é mentira? Haveria um registro formal e transparente sobre as censuras aplicadas?
A intervenção estatal na definição de fake news é um grave problema por várias razões. Primeiramente, há o risco de que tal poder seja utilizado de maneira arbitrária ou política, silenciando vozes dissidentes e limitando o debate público. Em um cenário ideal, a definição do que constitui fake news deveria ser clara e objetiva, mas na prática, a subjetividade é inevitável, o que inviabiliza a regulamentação. Isso abre precedentes perigosos para a censura, especialmente quando governos utilizam essa ferramenta para sufocar a oposição. Como consequência, poderá gerar medo da sociedade em se manifestar pela dúvida de saber o que é ou não verdade e prejudicará a criação de novas tecnologias, pois haveria uma carga muito pesada sobre as plataformas para atender o controle exigido pelo Estado.
A Constituição Federal do Brasil, em seu artigo 5º, inciso IV, assegura que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. Esse direito é complementado pelo inciso IX, que garante a “liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Quando o Estado atrai o direito de definir o que é fake news, ele pode estar infringindo esses dispositivos constitucionais, impondo uma forma de censura prévia.
A censura estatal na definição de fake News pode ter efeitos perigosos na sociedade. Primeiramente, ela pode inibir a participação cidadã nas redes sociais, uma vez que os indivíduos podem temer represálias por expressar suas opiniões. Além disso, a censura pode criar um ambiente de conformidade forçada, onde apenas as narrativas alinhadas ao governo são permitidas. Isso não só empobrece o debate público, como também mina a confiança dos cidadãos nas instituições democráticas.
A liberdade de expressão é tratada de maneiras distintas em diferentes países. Nos Estados Unidos, por exemplo, a Primeira Emenda da Constituição garante uma proteção robusta à liberdade de expressão, incluindo a disseminação de informações falsas, exceto em casos de difamação, incitação à violência ou ameaças diretas. O judiciário norte-americano adota uma postura muito restritiva em relação à censura governamental.
Na União Europeia, a situação é mais complexa. Embora a liberdade de expressão seja amplamente protegida, existem leis específicas que abordam a disseminação de desinformação, especialmente quando ela representa uma ameaça à ordem pública ou à segurança nacional. No entanto, essas leis são acompanhadas de salvaguardas rigorosas para evitar abusos.
De um lado mais radical, onde há leis rigorosas contra a disseminação de informações falsas sobre o governo e suas ações, temos países como Rússia, China, Irã, Turquia, Egito, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, onde o monitoramento das redes sociais é utilizado para penalizar usuários que criticam o governo com supostas mentiras, inclusive com prisão.
Não é fácil definir o que é verdade ou mentira, pois, muitas vezes, são apenas pontos de vista – e o ser humano tende a colocar a sua versão da verdade acima de todas as outras interpretações. Tornar objetivo algo que pela sua natureza é subjetivo é um ato impossível. Acredito que o caminho melhor seja o tradicional, ou seja, na ocorrência da divulgação de uma informação falsa, afiançar que o ofendido possa buscar guarida judicial, dentro da devida competência, e com a garantia constitucional e legal dos instrumentos de acusação e defesa, para que o infrator pague pelo dano de forma proporcional.
O Brasil, historicamente conhecido como uma nação que prima pela liberdade, deve decidir qual caminho tomar. Caso decida pela limitação da liberdade em favor da proteção da imagem das instituições, acredito que teremos uma abertura perigosa para o autoritarismo, no qual serão punidos não todos os disseminadores de “notícia falsa”, mas apenas os opositores políticos e/ou pessoais. Certamente não estamos vivendo diante de uma grave ameaça ao Estado Democrático de Direito para que medidas extremas sejam tomadas, e, a meu ver, nunca estivemos, nem mesmo com os arruaceiros que quebraram os prédios da Praça dos Três Poderes, que deveriam responder pelos seus atos, isoladamente, por depredação de patrimônio público, já que para se ter um Golpe de Estado deveria haver a participação das Forças Armadas, dentre outros elementos que caracterizassem um efetivo risco.Ao que parece, estamos vivenciando um mundo de narrativas, onde as fake news mais bem contadas, por mais vezes e pelos especialistas do momento, são aquelas tidas como informações verdadeiras. Teremos que passar por uma ditadura da fala para valorizar a liberdade?
Por Karina Kufa, professora, advogada e autora de vários livros na área de direito eleitoral. É advogada do ex-presidente Jair Bolsonaro.