A legislação que mais se aproxima da eventual violabilidade do sigilo dessas fontes, conferindo-se maior proteção em relação às demais normas, é a Lei Federal n. 9.296. Escreve Vinícius Segatto.
23/08/2024 06:12
“Comunicabilidade cibernética atualmente possui uma gama de possibilidades”
Em meados do século XX, a história foi marcada pela “Era da Informação” com a ascensão da tecnologia caminhando para a atual “Era Digital”. Dentro desse contexto, de acordo com a Organização Mundial da Saúde, 75% da população mundial acima de 10 anos tem um telefone celular e 66% estão conectadas à rede de Internet.
É cediço, assim, que a ciência tecnológica impacta diretamente o meio industrial, empresarial, o comportamento humano e as relações sociais, de modo que hábitos anteriormente tradicionais, a exemplo das ligações por telefone fixo, da máquina fotográfica, do acesso presencial a bancos, mercados, farmácias e cinemas, bem como dos pagamentos em papel-moeda, podem ser efetivados por um único item: o smartphone.
A comunicabilidade cibernética, telefônica e tecnológica atualmente possui uma gama de possibilidades. A integração das redes oferta aos consumidores incontáveis aplicativos como instrumentos de transmissão, recepção de mensagens e contatos instantâneos, a exemplo do Telegram, WhatsApp, Mídias Sociais (Instagram, Facebook, X/Twitter), drives, dentre outros.
Nessa perspectiva, como instrumento à persecução penal para colheita de elementos probatórios, tem sido usual a quebra de sigilo desses dados e arquivos através de medidas como a Busca e Apreensão do aparelho celular do indivíduo investigado, com o consequente acesso às informações nele constantes, bem como os dados salvos remotamente pelo usuário.
Todavia, a principal problemática dessa violabilidade de dados cinge-se na ausência de regulamentação específica para o procedimento a ser adotado pelo corpo investigativo, especialmente quando as medidas invasivas alcançam informações de cunho personalíssimo, com expressa proteção nos incisos X, XII e LXXIX do art. 5º da Constituição Federal.
Na prática, a legislação que mais se aproxima da eventual violabilidade do sigilo dessas fontes, conferindo-se maior proteção em relação às demais normas, é a Lei Federal n. 9.296 de 24 de julho de 1996, que define a interceptação de comunicações telefônicas e institui seus requisitos, pois prescreve um procedimento mínimo a ser observado tanto pela Autoridade Policial, quanto pelo Parquet e pelo respectivo órgão julgador para o acesso aos dados, além de ser voltada especificamente às provas em investigação criminal e em instrução processual penal.
Sucede-se, entretanto, que, de acordo com a jurisprudência predominante, a quebra de sigilo de dados armazenados não está abrangida pela Lei que disciplina a inviolabilidade das comunicações telefônicas (Lei Federal n. 9.296/96), pois, conforme o entendimento explanado, não há interceptação, mas acesso às informações armazenadas, como se fossem meros documentos físicos, em analogia ao art. 232 do Código de Processo Penal.
Por conseguinte, entendem a doutrina e a jurisprudência que é aplicável a tais casos a Lei Federal n. 12.965/2014 (Lei do Marco Civil da Internet), que estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil.
A Lei n. 12.965/2014 possui como fim regularizar o uso da internet no País, instituindo uma série de diretrizes a serem observadas pelos entes federativos, pelos provedores, pelas empresas e usuários. Basicamente, intenta propiciar condição digna de experiência tecnológica aos cidadãos, desenvolvendo sua atuação no ambiente digital. Tal legislação tem como base três grandes pontos: a liberdade de expressão, a neutralidade de rede e a privacidade.
Nesse cenário, o Marco Civil da Internet não possui o propósito de regulamentar e definir o procedimento a ser adotado pelos agentes investigativos ao longo da persecução criminal, pois não define diretrizes tão sólidas quanto às da Lei n. 9.296/96 para o acesso e obtenção dos dados e informações armazenadas na “nuvem” e no disco rígido do aparelho telefônico de uso particular do indivíduo investigado, e tampouco tece qualquer regulamentação sobre o uso indiscriminado de Spywares pelos agentes públicos.
Embora compreendam os Tribunais Pátrios que o acesso em voga se refere apenas a “dados em si mesmo”, sendo aplicável a Lei n. 12.965/2014, a interceptação telefônica possui como espectro a “intimidade e privacidade” do indivíduo tão somente durante o diálogo telefônico, em aspecto meramente momentâneo.
Por outro lado, o acesso aos itens armazenados em smartphones e respectivas “nuvens” são significativamente mais amplos: não há critério ao que será mínima ou completamente acessado; inexiste parâmetro mínimo à inviolabilidade, bastando ordem judicial com respaldo em “mínimos indícios”, em efetivo risco ao decisionismo genérico.
O acesso ao aparelho celular do investigado, então, permite uma extensa e detalhada “descoberta” sobre sua vida privada e íntima, pois a obtenção do acervo probatório não é instantânea e limitada à relação de diálogo estabelecida pelo indivíduo através de uma ligação por telefonia, como é o caso da interceptação telefônica.
Por Vinícius Segatto é advogado, especialista em Direito Penal Econômico.