Opinião – Excesso de judicialização no seguro agrícola prejudica empresas e produtores

Embora as seguradoras tenham exercido esforços para honrar seus compromissos, essa corrida às indenizações também trouxe várias demandas oportunistas. Escreve Luciano Timm.

18/09/2024 06:12

“Eventos como secas severas, geadas intensas e tempestades de granizo afetam simultaneamente vastas áreas de cultivo”

Índices de produtividade da agricultura brasileira cresceram bem acima da expansão de área nas últimas quatro décadas| Foto: Michel Willian

Sabe-se que a fortaleza do agronegócio brasileiro deriva, entre outros fatores, da “diáspora” gaúcha. Descendentes de imigrantes que herdaram pequenas propriedades do governo brasileiro acumulam expertise e capital para subir o país rumo ao Centro Oeste e mais recente o Nordeste. Nesse caminho estava o estado do Paraná, um gigante no agronegócio. Todavia, a região Sul sofre, como hoje é notório, de maior variação climática, tornando o seguro um componente importante de proteção social e mesmo de competitividade dessa região.

O mercado de seguros agrícolas é relativamente pequeno e concentrado no Brasil, tornando as seguradoras menores mais vulneráveis. Elas são fundamentais para garantia de algum grau de concorrência no mercado, beneficiando produtores que, no Paraná, não são necessariamente pequenos produtores, como não o são no Centro Oeste do país.

Pois bem. As safras de inverno de 2021 e de verão de 2021/2022 na região Sul do Brasil, particularmente no Paraná, foram impactadas por condições climáticas atípicas, resultando em um aumento sem precedentes tanto na frequência quanto na gravidade dos sinistros agrícolas. Essa situação provocou uma onda de judicialização envolvendo contratos de seguro agrícola e o tratamento que vem sendo dado pelo Poder Judiciário local traz preocupações pelas esperadas consequências decisórias tomadas até o momento. A combinação da falta de conhecimento, seja do agronegócio, seja de seguros agrícolas, por parte do Poder Judiciário, traz riscos de concentração de mercado e pode prejudicar produtores no longo prazo.

Com efeito, em 2021, a relação entre os prêmios arrecadados e os sinistros pagos em apólices de seguro rural no Paraná foi de R$ 1,47 em sinistros para cada R$ 1,00 em prêmios arrecadados. Esse índice é significativamente maior que a média da região Sul, que foi de 0,85, e do restante do país, que registrou 0,67 no mesmo período. Em 2022, essa relação no Paraná continuou alarmante, com R$ 1,40 em sinistros para cada real arrecadado, evidenciando um problema persistente e crescente. No segmento específico do seguro agrícola, a situação é ainda mais crítica: a sinistralidade no Paraná foi de 1,96 em 2021, subindo para 2,05 em 2022.

Muito embora as seguradoras tenham exercido esforços para honrar seus compromissos com os segurados, essa corrida às indenizações também trouxe várias demandas oportunistas, onde produtores buscam se beneficiar da apólice sem que tenham seguido as suas cláusulas contratuais. Ao levar essas demandas ao Judiciário, alguns surpreendentemente conseguiram lograr êxito, o que adicionou um custo ainda maior às seguradoras, forçando algumas delas a sair de um mercado que já é concentrado.

Eventos como secas severas, geadas intensas e tempestades de granizo afetam simultaneamente vastas áreas de cultivo, resultando em um aumento substancial no número de apólices acionadas. Esse fenômeno, conhecido como “sinistro generalizado”, é um dos maiores desafios para as seguradoras que atuam no setor agrícola, pois, ao contrário de outros tipos de seguro, onde os sinistros são distribuídos ao longo do tempo e do espaço, no seguro agrícola um único evento pode desencadear uma enxurrada de sinistros ao mesmo tempo. Essa característica torna o seguro agrícola especialmente vulnerável a variações climáticas extremas e dificulta a diluição do risco, aumentando consideravelmente os custos para as seguradoras, especialmente para as de menor porte.

Além das dificuldades inerentes ao sinistro generalizado, o setor de seguro agrícola enfrenta problemas estruturais próprios do mercado de seguros como o risco moral e a seleção adversa. O risco moral ocorre quando os agricultores, ao saberem que estão segurados, adotam práticas mais arriscadas, na crença de que serão indenizados em caso de perdas. A seleção adversa, por outro lado, refere-se à tendência de apenas os agricultores com maior risco de sinistro contratarem seguro, o que, por sua vez, eleva a sinistralidade. Tudo isso é exacerbado quando o Poder Judiciário abandona o Direito Securitário, que é um ramo próprio do Direito e abraça o Código de Defesa do Consumidor buscando fazer “justiça social” sem ponderar, como determina o artigo 20 da LINDB, as consequências decisórias.

Uma ferramenta essencial para mitigar esses riscos é o Zoneamento Agrícola de Risco Climático (ZARC), que define as janelas ideais de plantio para cada cultura em cada município, baseado em uma análise detalhada dos riscos climáticos específicos de cada região. Respeitar as recomendações do ZARC permite aos agricultores reduzir a probabilidade de perdas simultâneas por eventos climáticos, diminuindo, assim, a ocorrência de sinistros generalizados. No entanto, a eficácia do ZARC tem sido frequentemente comprometida por intervenções judiciais que ignoram suas diretrizes previstas em cláusulas contratuais. Quando o Judiciário concede indenizações a agricultores que plantaram fora do período recomendado pelo ZARC (e ninguém conhece melhor isso que produtores rurais), enfraquece-se um dos principais mecanismos de mitigação de riscos disponíveis no setor, incentivando o descumprimento dessas recomendações e aumentando a frequência e magnitude dos sinistros generalizados.

Além disso, a aplicação inadequada do Código de Defesa do Consumidor (CDC) em disputas envolvendo grandes produtores ou cooperativas pode criar distorções significativas no mercado de seguros agrícolas. Embora o CDC tenha sido criado para proteger consumidores vulneráveis, aplicá-lo de forma indiscriminada em disputas comerciais envolvendo produtores rurais (que são empresários) pode favorecer práticas oportunistas, onde produtores adotam riscos excessivos, seguros de que serão indenizados independentemente de suas ações. Essa prática não apenas distorce o mercado, como também resulta em prêmios mais altos para todos os agricultores, reduzindo a oferta de seguros, especialmente para os pequenos produtores.

A concentração do mercado de seguros agrícolas é outra consequência das dificuldades enfrentadas pelo setor. Com o aumento dos sinistros, muitas seguradoras têm encontrado dificuldades em se manter no mercado, que já é dominado por poucas empresas. A Brasilseg Companhia de Seguros, por exemplo, que controlava 60,2% do mercado em 2019, ampliou sua participação para 61,5% em 2023 – lembrando que a legislação concorrencial presume poder de mercado com 20% do mercado relevante. A Mapfre Seguros Gerais S.A., segunda maior seguradora do setor, também aumentou sua participação de 8,58% em 2019 para 8,98% em 2023. Esse cenário de concentração cria um ambiente onde a competição é reduzida, e as consequências de decisões judiciais podem ser ainda mais impactantes, afetando diretamente a dinâmica do mercado e a sustentabilidade dos seguros disponíveis para os agricultores. Diante da complexidade e dos desafios que permeiam o mercado de seguros agrícolas, especialmente no Paraná, torna-se evidente a necessidade de uma abordagem mais informada e equilibrada por parte do Judiciário.

A análise econômica do Direito pode desempenhar um papel crucial na compreensão das implicações das decisões judiciais, levando em consideração os incentivos dos agentes, as falhas de mercado e as possíveis consequências não intencionais dessas decisões. É essencial que o Judiciário, ao lidar com disputas envolvendo seguros agrícolas, leve em conta as especificidades desse mercado, evitando ações que, embora bem-intencionadas, possam prejudicar os próprios agricultores que buscam proteger na já famosa metáfora do “efeito bumerangue”.

Para isso, é importante que haja uma boa produção de prova nos processos, em que as condições técnicas e econômicas sejam discutidas de forma ponderada, presumindo que o produtor rural seja o que ele realmente é, um empresário e, portanto, um profissional presumivelmente sofisticado em sua atividade; e ninguém conhece melhor o agronegócio que o produtor.

Hoje, o Brasil está enfrentando novos desafios climáticos, com clima seco e queimadas se alastrando do norte ao Sul do país. O país está “inflamável” e o Paraná, assim como outros estados, está, novamente, em alerta devido à baixa umidade. Mais uma vez, as seguradoras agrícolas do estado enfrentam um risco de aumento dos sinistros.

Nesse contexto, as decisões que o Judiciário paranaense vier a tomar em relação às disputas passadas devem ser bem observadas pelos players deste mercado. O posicionamento do Judiciário pode se mostrar decisivo para que essas empresas se posicionem estrategicamente, seja por uma maior internalização dos custos envolvidos no risco moral, por uma maior seletividade com os negócios firmados, ou mesmo, a depender do porte da empresa e sua exposição ao risco, pelo abandono do mercado.

 

 

 

Por Luciano Timm é advogado e professor da FGV; Willian Pablo é economista e consultor da AED CONSULTING.

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