O bloqueio das contas de uma empresa estrangeira, sem precedentes claros e sem um fundamento jurídico sólido, cria um cenário de incerteza jurídica. Escreve Gregório Rabelo.
03/10/2024 05:39
“o bloqueio das contas da Starlink parece ignorar essa norma jurídica fundamental”
A decisão do ministro Alexandre de Moraes de bloquear as contas da empresa Starlink para saldar dívidas da plataforma X, plataforma esta alvo de suspensão determinada pelo mesmo ministro, trouxe à tona um debate jurídico e econômico de grandes proporções, com implicações tanto no cenário nacional quanto internacional. A medida, que envolveu o bloqueio das contas de uma empresa distinta para sanar obrigações de outra, levanta preocupações sobre a separação jurídica entre entidades empresariais, abuso de poder e o respeito a princípios fundamentais do direito empresarial. Além disso, o impacto para investidores e usuários, tanto no Brasil quanto no exterior, é significativo, afetando diretamente a credibilidade do ambiente regulatório brasileiro.
A legislação brasileira é clara quanto à autonomia de cada pessoa jurídica, mesmo que elas integrem um grupo empresarial comum. O artigo 50 do Código Civil Brasileiro estabelece que a desconsideração da personalidade jurídica, ou seja, o tratamento de duas empresas como uma só, só pode ocorrer em circunstâncias excepcionais, como no caso de abuso de personalidade, confusão patrimonial ou fraude. O bloqueio das contas da Starlink para saldar dívidas da plataforma X, sem qualquer comprovação de confusão patrimonial ou fraude, contraria esses princípios fundamentais.
Nesse contexto, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, chamada também de doutrina da penetração é especialmente relevante, porque tem como objetivo responsabilizar os sócios em situações de dolo ou prejuízo. Esse conceito é aplicado pela jurisprudência quando a empresa é usada como disfarce pelos sócios, funcionando como um instrumento para fraudes.
Para que o Judiciário possa penetrar na esfera patrimonial de uma empresa distinta, é necessária uma justificativa robusta, baseada em provas concretas de que as atividades empresariais se misturam ao ponto de não ser possível distingui-las. No caso em questão, não há evidências de que a Starlink e a plataforma X tenham suas atividades empresariais interligadas de forma que justifique a medida drástica de unificação patrimonial. Isso caracteriza uma violação do princípio da autonomia das pessoas jurídicas e sugere um uso inadequado do poder jurisdicional, colocando em xeque a segurança jurídica para empresas no Brasil.
O artigo 50 do Código Civil é fundamental para discutir a questão da separação entre personalidades jurídicas. A desconsideração da personalidade jurídica, como mencionada anteriormente, permite que o Judiciário ultrapasse a barreira formal entre empresas, porém, apenas quando há abuso dessa separação, seja para fraudar credores ou confundir patrimônios. Para que a Starlink fosse responsabilizada pelas dívidas da plataforma X, seria necessário comprovar que ambas compartilham a mesma estrutura administrativa e que há confusão patrimonial entre as entidades. Tal comprovação não foi feita, e, portanto, o bloqueio das contas da Starlink parece ignorar essa norma jurídica fundamental, colocando em risco a previsibilidade das decisões judiciais no país.
Outro ponto crítico da decisão é a falta de clareza no processo de intimação de Elon Musk. O princípio do devido processo legal, previsto no artigo 5º, LIV, da Constituição Federal, garante que todas as partes envolvidas em um processo judicial tenham a oportunidade de se defender, com formalidade e respeito às normas processuais. A Starlink, sendo uma entidade jurídica distinta da plataforma X, não foi devidamente intimada no processo que gerou a penalidade. Como resultado, não teve a chance de exercer seu direito de defesa, o que configura uma violação clara do devido processo legal.
É imperativo que a intimação seja realizada de maneira formal e específica, citando diretamente a empresa envolvida nas sanções. No caso, a Starlink, embora ligada a Elon Musk, não foi mencionada na ordem judicial que impôs as sanções contra a plataforma X. Essa falta de clareza no processo de comunicação compromete a legitimidade da decisão e abre espaço para contestação judicial com base na violação dos princípios processuais básicos.
A decisão do ministro também põe em evidência o princípio da segurança jurídica, que é essencial para garantir previsibilidade e estabilidade no ordenamento jurídico brasileiro. O princípio da segurança jurídica implica que as decisões judiciais devem ser claras, previsíveis e baseadas em precedentes, de forma a garantir que empresas e indivíduos possam planejar suas ações e investimentos com confiança.
No entanto, o bloqueio das contas de uma empresa estrangeira como a Starlink, sem precedentes claros e sem um fundamento jurídico sólido, cria um cenário de incerteza jurídica. A ausência de uma regulamentação específica para tratar de situações envolvendo grandes plataformas digitais e empresas multinacionais, como a Starlink e a plataforma X, agrava essa insegurança. A jurisprudência brasileira carece de precedentes robustos sobre o tratamento de grandes empresas tecnológicas, especialmente quando se trata de bloqueio de contas ou sanções administrativas, o que deixa uma lacuna jurídica considerável.
Essa falta de clareza e previsibilidade nas decisões pode ter consequências de longo prazo para o ambiente de negócios no Brasil. Empresas multinacionais de tecnologia, que desempenham um papel cada vez mais relevante na economia global, podem reconsiderar seus investimentos no país se perceberem um ambiente regulatório instável e imprevisível. Isso pode afetar diretamente o fluxo de investimentos estrangeiros, comprometendo o desenvolvimento econômico e tecnológico do Brasil.
Outro aspecto que merece atenção é a violação de normas de cooperação jurídica internacional. Empresas como a Starlink, que operam em diversos países, estão sujeitas a diferentes regimes jurídicos. O bloqueio das contas de uma empresa estrangeira sem a devida comunicação e formalidade processual pode ser visto como uma violação das obrigações internacionais assumidas pelo Brasil em tratados como a Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas. Esses tratados regulam a forma como as nações devem cooperar e se comunicar em questões jurídicas transnacionais.
A ausência de mecanismos formais, como o uso da carta rogatória para notificação da Starlink, compromete a validade da sanção no contexto internacional e pode abrir no Brasil a contestações em tribunais internacionais. O direito internacional exige que a cooperação entre nações seja transparente, formal e respeite os marcos legais de cada país. Ao não observar esses trâmites, a decisão de bloquear as contas da Starlink compromete a reputação do Brasil como um país que respeita as normas internacionais de cooperação jurídica.
Além dos aspectos jurídicos, é importante considerar o impacto econômico da decisão. A Starlink desempenha um papel crucial na conectividade de áreas remotas, especialmente na Amazônia, onde fornece serviços essenciais de internet. A suspensão de suas operações, como resultado do bloqueio das contas financeiras, não afeta apenas a administração da empresa, mas também milhares de usuários que dependem de seus serviços para atividades cotidianas e produtivas. O bloqueio também pode afetar diretamente as cadeias produtivas que dependem da conectividade oferecida pela Starlink, como o setor agropecuário em regiões distantes.
Nesse contexto, a conectividade digital é fundamental para o desenvolvimento econômico e social do país, e qualquer interrupção pode gerar um efeito cascata em diversas áreas produtivas. Empresas estrangeiras que consideram investir no Brasil podem ver essa decisão como um sinal de instabilidade jurídica e regulatória, o que pode afastar investimentos importantes, comprometendo o crescimento econômico do país.
A decisão também evidencia a falta de precedentes claros para lidar com a regulação de grandes plataformas digitais e empresas de tecnologia no Brasil. Embora o Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) ofereçam algumas diretrizes para a atuação dessas empresas, não há uma regulamentação específica que trate de sanções tão severas como o bloqueio de contas.
Essa ausência de precedentes cria uma zona cinzenta na jurisprudência brasileira, deixando espaço para interpretações divergentes e incertezas. O Judiciário, ao tomar decisões que afetam diretamente o mercado tecnológico e o ambiente de negócios, precisa agir com cautela, garantindo o respeito às normas internas e internacionais, de forma a preservar um ambiente jurídico estável e seguro.
Por Gregório Rabelo é advogado.