Opinião – Cuidado ou interesse? Os limites de velocidade e a ética da obediência

A discussão sobre os limites de velocidade e outras regras de trânsito precisa ir além do debate sobre obediência cega. Escreve Marcos Pena Júnior.

28/01/2025 06:40

“Seria justo que a arrecadação fosse integralmente destinada à melhoria da infraestrutura”

 

Foto: Rodrigo Cunha

Em que medida as regras impostas pelo Estado, como os limites de velocidade nas vias, são realmente baseadas em lógica técnica e segurança, e não em interesses políticos ou econômicos? As leis de trânsito têm uma justificativa nobre: proteger vidas. Mas, no Brasil, até que ponto a definição dos limites de velocidade é realmente pautada por critérios técnicos e de segurança? Em um país onde radares e multas geram bilhões, é inevitável perguntar: há cuidado ou há interesse escondido nessa lógica?

Apesar de a justificativa oficial sempre apontar para a preservação da vida e a redução de acidentes, muitos críticos argumentam que os limites excessivamente baixos em algumas vias podem estar mais relacionados a interesses de arrecadação (a “indústria de multas”) do que a uma preocupação real com a segurança viária. Comparando-se essa situação com abordagens adotadas em outros países, como a Alemanha, onde trechos de rodovias não têm limites de velocidade obrigatórios, o debate se torna uma reflexão mais ampla sobre a importância de agir de forma responsável diante das normas sociais. A questão central é: até que ponto é correto obedecer cegamente a essas normas, e quando se justifica um questionamento crítico sobre a sua validade?

A lógica por trás da definição dos limites de velocidade, em teoria, está fundamentada em estudos que comprovam a relação direta entre o aumento da velocidade e a gravidade dos acidentes de trânsito. Estudos da OMS mostram que a velocidade tem um impacto brutal na sobrevivência de um atropelamento. A 50 km/h, um pedestre tem quase cinco vezes menos chance de sobreviver do que a 30 km/h. O dado é frio, mas a conclusão é direta: velocidade salva ou tira vidas. Além disso, um estudo australiano mostrou que a redução do limite de velocidade de 60 km/h para 50 km/h em áreas urbanas resultou na prevenção de cerca de 2.900 acidentes com vítimas por ano, argumentando que, em alguns contextos, essas medidas podem ter um impacto significativo na segurança viária. Esses dados reforçam a importância da moderação e do senso de responsabilidade na criação e no cumprimento de normas, princípios que vão além da simples questão técnica e envolvem uma ética coletiva mais ampla.

No Brasil, os limites de velocidade são estabelecidos pelo Código de Trânsito Brasileiro (CTB) e variam conforme o tipo de via: em rodovias federais, o limite é de 110 km/h para carros de passeio e 90 km/h para veículos pesados; em áreas urbanas, o limite padrão é de 60 km/h, com reduções em zonas escolares ou locais de maior risco. No entanto, a aplicação dessas regras tem gerado críticas, especialmente em cidades onde a “indústria de multas” se tornou uma fonte bilionária de arrecadação. Segundo uma investigação do Tribunal de Contas da União (TCU), houve um aumento significativo na arrecadação de multas em algumas capitais brasileiras, levantando suspeitas de que os limites estão sendo usados como uma forma de gerar receita, em vez de garantir segurança viária. Em São Paulo, em 2022, as multas de trânsito renderam mais de R$ 1 bilhão aos cofres públicos. Não surpreende: em trechos onde a sinalização é confusa ou muda abruptamente, o motorista vira presa fácil. A pergunta que incomoda é: estamos protegendo vidas ou apenas financiando o orçamento público?

Comparando o cenário brasileiro com práticas internacionais, é possível perceber abordagens significativamente diferentes no estabelecimento de limites de velocidade. Na Alemanha, onde rodovias parecem pistas de aviação, trechos sem limite de velocidade fazem sentido. A qualidade é impecável e a responsabilidade, inegociável. Por aqui, com buracos que desafiam até tanques de guerra e sinalizações quase invisíveis, limites baixos soam mais como desculpa do que solução. Dados do Departamento Federal de Estatísticas da Alemanha (Destatis) indicam que, em 2020, aproximadamente 70% das autobahns não possuíam limites de velocidade obrigatórios, enquanto os demais trechos tinham limites fixos ou variáveis.

No Brasil, com estradas frequentemente esburacadas, sinalização falha e fiscalização punitiva, limites excessivamente baixos parecem disfarçar falhas estruturais em vez de abordar as reais causas dos acidentes. Nos Estados Unidos, os limites variam de estado para estado, podendo chegar a 120 km/h em áreas rurais, enquanto em áreas urbanas e mais densas os limites são mais restritos, entre 88 km/h e 105 km/h. Nos países escandinavos, como a Suécia e a Noruega, os limites são definidos com base em análises rigorosas de segurança viária, variando de 100 km/h a 120 km/h, e acompanhados de políticas abrangentes de educação e investimentos em infraestrutura segura. Essas diferenças destacam que a definição de normas deve sempre considerar a realidade local e promover um senso de responsabilidade coletiva, em vez de simplesmente impor regras que não refletem o contexto.

Essas decisões políticas e econômicas que influenciam os limites de velocidade trazem à tona um debate ético e prático importante. Em muitas cidades brasileiras, a instalação de radares e a fixação de limites baixos em trechos estratégicos são vistas por alguns como uma forma de arrecadação de recursos financeiros para os municípios, em vez de uma medida de segurança pública. Esse fenômeno, conhecido como ‘indústria de multas’, reflete a maneira como regras de trânsito podem ser manipuladas por interesses que não são estritamente lógicos ou técnicos.

Além disso, é importante considerar que, em certos casos, a introdução de regras mais rígidas pode ter sido motivada por pressões de grupos de interesse ou pela necessidade de aumentar a arrecadação, e não necessariamente por um desejo de reduzir acidentes. Nesse contexto, a ética na criação e no cumprimento das normas deve sempre promover o bem comum e garantir que a segurança esteja no centro das decisões.

A questão ética de seguir ou não essas regras provoca um dilema legítimo. De um lado, obedecer às leis é essencial para manter a ordem e a segurança coletiva. Por outro, como apontou Henry David Thoreau em Desobediência Civil: quando uma lei oprime em vez de proteger, desobedecê-la não é erro, é resistência. Uma regra que pune mais do que previne perde sua moralidade. Se uma lei serve mais para punir do que para proteger, ela perde sua legitimidade moral.

A respeito dos limites de velocidade, é válido refletir: até que ponto é ético penalizar motoristas em trechos onde a regra parece descolada da realidade e mais interessada em arrecadar cifras do que em salvar vidas? No trânsito brasileiro, quando o limite se torna uma armadilha, a injustiça está ali, silenciosa, escondida sob uma placa. Thoreau argumentava que a obediência cega a leis injustas perpetua um sistema opressor, e a desobediência pode ser uma forma de protesto legítimo. Contudo, é preciso ponderar: a responsabilidade individual implica agir de forma ética, mesmo em meio a regras contestáveis, para proteger o bem-estar de todos.

A discussão sobre os limites de velocidade e outras regras de trânsito precisa ir além do debate sobre obediência cega. Além disso, seria justo que a arrecadação com multas fosse integralmente destinada à melhoria da infraestrutura viária e à educação de trânsito. Normas justas só serão respeitadas quando os motoristas enxergarem nelas um compromisso genuíno com a segurança e o bem comum. A cidadania crítica exige que os indivíduos questionem regras que parecem injustas ou motivadas por interesses políticos, mas também que atuem dentro dos meios legais e democráticos para promover mudanças.

Ao mesmo tempo, é necessário um diálogo mais amplo entre especialistas, políticos e a sociedade civil, de forma que as decisões em torno das políticas de trânsito equilibrem segurança, liberdade de circulação e eficiência. Um sistema justo e funcional requer responsabilidade ética, em que cada regra deve ser analisada e cumprida com o equilíbrio necessário para promover o bem-estar coletivo. Chegou a hora de rever os limites com olhos abertos e honestidade: menos burocracia e mais compromisso com a vida real nas estradas. Que a arrecadação com multas não encha cofres, mas recupere asfaltos e salve vidas. Sem isso, continuaremos rodando em círculos – devagar, mas sem destino.

 

 

 

Por Marcos Pena Júnior é economista, filósofo e escritor; pesquisador do Núcleo de Filosofia Política do LABÔ da PUC-SP; autor de “Do riso às lágrimas: poemas contra ressentimentos” (2021) e “Visagens nossas de cada dia: uma história da Independência” (2022).

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