Opinião – Validade de alimentos: um debate sobre segurança alimentar e não inflação

O Governo Federal deveria focar na ampliação do acesso da população a alimentos saudáveis e nutritivos para todos. Escreve Eder Bublitz.

29/03/2025 06:42

“A preocupação com a segurança alimentar deve estar acima de qualquer lógica de mercado.”

Foto: Hanson Lu/Unsplash

A recente proposta de venda de alimentos após o prazo de validade, defendida por setores do varejo e recebida com simpatia pelo governo federal, levanta um debate essencial: trata-se de uma medida para reduzir desperdícios e garantir alimentação saudável para toda a população ou uma estratégia para maquiar a inflação e empurrar alimentos vencidos para os mais pobres em um novo “mercado”?

O Brasil enfrenta, de fato, um problema estrutural de desperdício de alimentos. A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) estima que 30% da produção de alimentos são desperdiçados a cada ano no país, o que corresponde a 46 milhões de toneladas de comida e coloca o Brasil em 10º lugar entre os país que mais desperdiçam. Enquanto isso, dados do próprio governo federal mostram que mais de 8,5 milhões de brasileiros enfrentam insegurança alimentar e nutricional grave.

E é por isso que a solução para esse desperdício não pode ser a venda de alimentos fora da validade. O correto seria ampliar as políticas de doação, garantindo que esses produtos cheguem a quem precisa sem comprometer a segurança alimentar da população.

A experiência internacional mostra que há diferentes caminhos para lidar com essa questão. Em países da Europa, como a Dinamarca, há supermercados que comercializam exclusivamente produtos vencidos a preços reduzidos. Mas isso não significa que esse modelo deva ser adotado no Brasil. Aqui, a realidade econômica e social é distinta, e a venda de produtos vencidos pode se tornar uma prática perigosa, principalmente se vier sem regulamentação adequada e sem fiscalização eficiente.

A preocupação com a segurança alimentar deve estar acima de qualquer lógica de mercado. No Brasil, a data de validade dos alimentos já conta com uma margem de segurança. O que é tratado como prazo de vencimento de um produto aqui, é tratado como uma recomendação na maioria dos países do mundo. É o conceito do “bestbefore” que indica que é melhor consumir tal alimento antes de determinada data, mas não determina que, após essa data, o produto deva ser imediatamente descartado. Ele pode perder alguma característica que está associada a seu valor de mercado, como sabor, textura, cor, mas não perde seu valor nutricional.

O problema não está no consumo eventual de um produto fora da validade, mas na criação de um mercado paralelo onde alimentos vencidos sejam vendidos como solução de política pública, em vez de serem doados a quem precisa.

A Ceasa do Paraná já demonstra que há alternativas viáveis aos alimentos fora da validade. O Banco de Alimentos Comida Boa, iniciativa premiada nacional e internacionalmente, resgata produtos que iriam para o lixo e os distribui para famílias em situação de vulnerabilidade. Em 2023, o programa salvou 5,3 milhões de quilos de alimentos que seriam descartados. Em 2024, o número já subiu para 7,5 milhões de quilos. São produtos que perderam valor comercial, mas mantêm seu valor nutricional e chegam a milhares de pessoas sem comprometer a dignidade do consumidor. Aqui, o que não pode mais ser vendido, mas pode ser consumido, é distribuído a instituições públicas e filantrópicas de assistência aos necessitados, ou a famílias cadastradas no nosso programa. O que não têm mais condições de ser distribuído in natura, é processado em nossa cozinha industrial e chega às pessoas em forma de molhos, sucos e compotas. Sempre de forma gratuita.

A questão central, portanto, não é se um saco de arroz ou uma lata de leite em pó ou qualquer outro alimento podem ser consumidos após a data de validade. O verdadeiro debate é: qual política pública é mais justa e responsável? A venda de produtos vencidos pode criar um perigoso precedente, incentivando a estocagem excessiva por varejistas e penalizando justamente os mais pobres, que terão como única opção: comprar alimentos que o restante da população rejeitou.

O governo federal deveria focar na ampliação do acesso a alimentos saudáveis e nutritivos para todos, em vez de flertar com medidas paliativas que mascaram problemas estruturais. A fome e a inflação não podem ser combatidas com medidas improvisadas que colocam em risco a saúde da população mais vulnerável.

Se há interesse genuíno em reduzir o desperdício, o caminho correto é fortalecer e ampliar as iniciativas de doação, permitindo que produtos bons para o consumo sejam destinados a quem precisa, sem transformá-los em mercadoria de segunda linha. Segurança alimentar não pode ser confundida com desespero econômico.

 

 

 

Por Eder Bublitz é diretor-presidente da Ceasa-PR – Centrais de Abastecimento do Paraná.

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