Jornalistas aceitam a interferência no Legislativo, quando deveriam estar denunciando a atuação político-partidária e a prevaricação de ministros do STF. Escreve Luís Ernesto Lacombe.
02/04/2025 10:55
“Nem mentindo é possível comparar o 8 de Janeiro”

A Constituição está sendo destruída, mas os jornalistas não querem ver o que está acontecendo. (Foto: Marcio Antonio Campos com Midjourney)
Eu tenho certeza de que o Brasil não teria se tornado uma tirania, se a imprensa, de um modo geral e criminoso, não tivesse desistido de ser imprensa. Nenhum ministro do STF teria se entregado com tanta desfaçatez a arbítrios, abusos e ilegalidades. Se o Senado não cumpre o seu papel de “vigia do vigia”, de olho no Supremo, sempre cabe aos jornalistas trabalhar com fatos, a busca da verdade, com atenção máxima ao descumprimento das leis, para fazer as denúncias necessárias. Já houve época em que a imprensa era chamada de “quarto poder”, mas esse tempo passou.
Foi patética a cobertura “jornalística” das sessões de análise da denúncia apresentada pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet, contra Jair Bolsonaro e sete aliados dele. Primeiro, não houve “tentativa de golpe de Estado”, e qualquer jornalista que afirme o contrário está abandonando seu ofício. É impossível aceitar que um jornalista se entregue a narrativas fajutas e ainda defenda a negação de todos os pleitos preliminares das defesas dos denunciados. Os juristas e advogados sérios que apontam o desrespeito ao devido processo legal e o cerceamento à ampla defesa são simplesmente ignorados. Os “jornalistas” sempre sabem mais do que eles…
Merval Pereira, do O Globo, está entregue de forma imortal ao delírio. Ele insiste em tratar o STF como “grande defensor da democracia”: “Vemos um STF ao lado da sociedade civil, fundamental na resistência à implantação de uma outra ditadura”. E nessa mesma onda está Míriam Leitão… Ela mentiu, tentando comparar o 8 de Janeiro com a implantação do regime militar na década de 1960: “Um dos argumentos a favor dos manifestantes é que ninguém morreu. Portanto, aquele ataque às sedes dos Três Poderes não seria tão belicoso. No dia primeiro de abril de 1964, também não morreu ninguém. Mas centenas e milhares morreram depois”.
Eu não sei o que quer dizer “centenas e milhares”… Agora, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, instituída em 1995 e vinculada à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, contabilizou 362 casos de mortes e desaparecimentos políticos… A Comissão de Familiares dos Mortos e Desaparecidos Políticos listou 383 mortos e desaparecidos no regime militar. Então, pergunto para a Míriam, cadê os “milhares”? Nem mentindo, dá para comparar o 8 de Janeiro – com um bodoque e sem forças militares – com o primeiro de abril de 1964.
Os editoriais naqueles que já foram os principais jornais do país embrulharam o estômago. Vou usar uma expressão que a imprensa que desistiu de ser imprensa adora… SEM PROVAS, o texto do Estadão afirmou o seguinte: “O governo de Jair Bolsonaro foi inspirado do início ao fim por um espírito golpista. A depredação dos pilares democráticos foi um diligente labor entre 2019 e 2022”. Faltou citar um exemplo disso… Porque não há. E o editorial ordinário seguiu: “O STF não tem o direito de errar, em primeiro lugar por compromisso inabalável com a ‘Constituição Cidadã’”… Ora, não apenas nessa ação contra Bolsonaro, mas nela também, o que o Supremo mais tem feito é rasgar inabalavelmente a Lei Máxima.
O editorial da Folha também afirmou, desapegado do mundo real, que “o fundamental é que as instituições brasileiras resistiram a uma ofensiva golpista”. Sim, Folha, o STF salvou a democracia, praticando abusos, arbítrios e ilegalidades. Vale tudo mesmo por uma “causa maior”. Porque, como trouxe em editorial o jornal carioca O Globo e como comentou Josias de Souza, do UOL, consultar dispositivos constitucionais para impedir a posse como presidente de um condenado em três instâncias por corrupção e lavagem de dinheiro, depois de uma eleição que teve uma campanha absolutamente desequilibrada em favor do petista, por si só, é crime.
Voltando a Merval Pereira, claro que ele achou ótimo quando, na última sessão da Primeira Turma do Supremo, Alexandre de Moraes resolveu assumir o papel de acusador e apresentar vídeos que não constam nos autos: “A exibição do vídeo dos momentos mais trágicos da tentativa de golpe me pareceu boa ideia, para trazer de volta o passado infame”. Ora, não pode ser considerado jornalista quem desconsidera essa ilegalidade praticada por Moraes (mais uma) que impede a ampla defesa, que descredibiliza o julgamento. Merval não quer nem saber. Infame é ele que faz questão de ignorar que quem produz provas de acusação é o Ministério Público, e não o julgador.
Nas sessões na Primeira Turma, Alexandre de Moraes citou um pronunciamento feito por Bolsonaro numa transmissão ao vivo na internet, em julho de 2021, e enfatizou o trecho em que o então presidente “incitou as Forças Armadas a atender ao chamamento do povo”, associando essa mensagem aos acontecimentos de janeiro de 2023, quase dois anos depois… É risível. O problema é que, mesmo que não haja prova material séria de que Bolsonaro tenha cometido qualquer um dos crimes a que responde, mesmo que nada o ligue à baderna do 8 de Janeiro, o que vemos é um jogo de cartas marcadas. Na análise da denúncia da PGR, isso ficou mais do que provado, mas o editorial do Estadão partiu para o deboche: “Ao fim de um julgamento que decerto capturará as atenções do país, só pode restar aos eventuais condenados o sagrado direito de espernear”.
O teatrinho do Supremo segue em ritmo acelerado, e os esforços passam a ser pela aprovação da Anistia. Jair Bolsonaro disse, na manifestação em Copacabana, que acertou com Gilberto Kassab o apoio do PSD ao projeto de lei. Isso foi em 16 de março. Três dias depois, aproveitando a mudança de entendimento do STF sobre o foro privilegiado de políticos, Moraes mandou uma investigação contra Kassab voltar da primeira instância para o STF. O inquérito alvo da decisão de Moraes tem origem na delação dos donos da JBS no âmbito da Operação Lava Jato e investiga o presidente do PSD por três crimes: corrupção passiva, caixa 2 e lavagem de dinheiro.
A investigação tinha sido enviada pelo próprio Alexandre de Moraes à Justiça Eleitoral de São Paulo em 2019. Seis anos depois, ela volta a ser relatada por ele, que é também relator do “inquérito do golpe”. É chantagem pura, é mais uma interferência do Judiciário no Legislativo, e, de novo, com apoio de boa parte da imprensa… Em artigo no Estadão, Eliane Cantanhêde escreveu o seguinte: “O ministro Moraes mira canhões contra a anistia, e Kassab é só uma advertência. Jogue a primeira pedra quem não tem nenhum probleminha na Justiça com emendas, desvios e processos eleitorais. Os presidentes do Senado, Davi Alcolumbre, e da Câmara, Hugo Motta? Quantos deputados e senadores? E eles estão mais preocupados em salvar a própria pele do que a de Bolsonaro. O Supremo sabe disso, como sabe ser bem ‘convincente’”.
A manobra de Moraes é claramente para pressionar Kassab e seu partido a não apoiarem o projeto de anistia aos envolvidos no 8 de Janeiro. Ou o PSD se posiciona contrariamente ao PL, ou Kassab estará em maus lençóis, sob a espada do ministro do Supremo. E Natuza Nery, da Globo News, também não vê problema algum nisso: “O custo político para o Centrão patrocinar o avanço da anistia é enorme, porque compra uma briga direta com o Supremo. Imagine que a anistia passe. Imagine uma decisão do ministro Flávio Dino: ‘Bom, estou decidindo aqui que vamos abrir tudo, Polícia Federal entra, Tribunal de Contas, me passa tudo aqui’. Vai sobrar o quê?”
Então, as duas comentaristas reconhecem que há corrupção sistêmica no uso das emendas parlamentares e que esse crime não está sendo investigado, nem julgado, nem punido. E que isso tudo só vai ser feito, caso os políticos não sigam os desejos do STF… Isso é muito grave. As duas jornalistas claramente aceitam a interferência do Judiciário no Legislativo, com o uso claro de chantagem. O que deveriam estar fazendo é denunciando tudo isso: a atuação político-partidária e a prevaricação de ministros do STF, já que não estão cumprindo suas funções legais e estão agindo contra a lei. Isso tudo é motivo para impeachment de ministro.
Jair Bolsonaro reagiu, com publicação nas redes sociais: “Há quem diga que vivemos em uma democracia, mas, todos os dias, a imprensa fala abertamente sobre o uso da justiça por Moraes como arma política, de intimidação, como instrumento de ‘pressão’ capaz de surtir efeito para intimidar o presidente de um partido. Isso não é normal, a não ser em ditaduras”. Bolsonaro tem razão. E, se a imprensa resolve aceitar tudo isso, ela está se matando e levando junto um país inteiro, mas ainda há jornalistas de verdade, e eles mantêm a entrega, a luta, numa guerra que só estaria perdida, se fosse abandonada.
Por Luís Ernesto Lacombe é jornalista e escritor. Por três anos, ficou perdido em faculdades como Estatística, Informática e Psicologia, e em cursos de extensão em administração e marketing. Não estava feliz. Resolveu dar uma guinada na vida e estudar jornalismo. Trabalha desde 1988 em TV, onde cobriu de guerras e eleições a desfiles de escola de samba e competições esportivas. Passou pela Band, Manchete, Globo, Globo News, Sport TV e atualmente está na Rede TV.