14/06/2016 09:24
”…Dilma e seus assessores logo conclamaram brilhantes intelectuais, professores e artistas para explicar ao povo que seu sofrimento era “belo e corajoso…”
São cinco horas da manhã, e estou na fila para comprar comida e, se tiver sorte, papel higiênico. Penso muito no passado mais recentes de meu país tão quebrado hoje, país que sempre foi regido por seu passado; hoje analiso-o do futuro. Em que ano estou? Minha lembrança mais antiga jaz no deserto, quando o Califado Islâmico tomou conta do Oriente Médio, chegando até as bordas de Israel-Palestina, já considerada “área insolúvel”. Depois da bomba que o presidente Trump lançou no Paquistão – hoje conhecido como Talebania –, muita coisa aconteceu nesses anos loucos.
Mas vou me ater às memórias do Brasil.
Aqui, passados muitos anos, me lembro ainda do calafrio que senti no dia em que Dilma voltou ao governo. Lembro-me de seu olhar gelado de vingança, perdoada pelo Senado, graças à aquisição de três senadores por R$ 10 milhões cada um.
Lembro-me de Dilma proclamando na ladeira do Planalto: “Vamos retomar a Nova Matriz Econômica! Gasto público é vida!”
Mantega já a esperava lá no alto, vendo a equipe econômica do Temer se esgueirando pelos fundos. E aí foi aquele carnaval bolivariano.
O MST encheu a Esplanada de miseráveis erguendo enxadas depois de terem arrasado a agroindústria, a CUT convocou milhares dos 12 milhões de desempregados e, com ônibus e sanduíches de mortadela, animou-os com a promessa de trabalho, protegidos pelos black blocks, agora nomeados a “guarda revolucionária da presidenta”. Acabou a insuportável Lei de Responsabilidade Fiscal, voltaram pedaladas muito maiores, pedaladas agora chamadas de “revolucionárias”, até que o real despencou face ao dólar, sendo cotado a R$ 13,788. Aí, elementos desobedientes e, segundo o PT 2, da “direita neoliberal” começaram a reclamar da fome, querendo fazer greves. Muitos sem-teto invadiram a sede da Petrobras para fazer suas moradias.
Mas Dilma e seus assessores logo conclamaram brilhantes intelectuais, professores e artistas para explicar ao povo que seu sofrimento era “belo e corajoso”, porque eles estavam penando por causa dos ricos e que um dia (sempre falavam “um dia”) o Brasil seria um paraíso social. O povão, como sempre, não entendeu nada e continuou passando fome, só que mais conformado, porque nossos intelectuais tinham explicado que há uma “pureza doce na miséria”, que a dor dignifica e fortalece para as lutas futuras. E proclamaram: “É melhor um país pobre do que desigual. Que todos sofram igualmente!” Os miseráveis se sentiram importantes, porque sofriam em nome do socialismo.
Mas a nova crise, chamada por Dilma de Crise 2 ,não dava refresco. A inflação cresceu com todos os seus demônios, batendo a “bela marca” de 1992, de 80% ao mês. Imediatamente, a Nova Matriz Econômica 2 revigorou a inesquecível tradição do passado – a correção monetária. E o Brasil reviveu os dias emocionantes com a volta do “overnight”. As maquininhas de “tlec-tlec” para a remarcação encheram os supermercados (cada vez mais vazios) com a doce melodia dos anos de ouro da inflação. Mas, segundo o Governo da Presidenta – Parte 2, canalhas neoliberais e a mídia conservadora diziam que a vaca ia para o brejo.
A pressão foi grande, e os assessores do Planalto notaram, preocupados, que Dilma começou a delirar, falando compulsivamente que “ela não era vaca no brejo”, que “gasto publico é vida”, que a mandioca e os homens sapiens iam nos salvar, que ela iria saquear (usou a palavra) o Tesouro acumulado pela “burguesia” de direita no Estado para financiar um grande consumo de geladeiras e fogões. A medida fascinou os pobres, que se acotovelaram em frente às vitrines de TVs e liquidificadores. Só que ninguém podia mais comprar nada.
Dilma engordou brutalmente – tinha gastado dez vezes mais em comida para o Alvorada, numa compulsão compensatória.
Mas a pressão ficou tão grande que ela caiu em depressão profunda e foi internada numa clínica de sonoterapia, onde dormiu até o fim do mandato, pois os médicos recomendaram que ela não visse “a cagada que tinha aprontado de novo”.
Lula sucedeu-lhe em 2018, continuando em 2022, criando uma dinastia de si mesmo, reeleito em vários mandatos, até 2034, quando ele já não falava mais e tinha sido mumificado num carro de vidro que desfilava entre a multidão de fiéis ajoelhados. Quando se iniciou a decomposição, seu corpo foi entronizado no Museu Bolívar, um palácio de mármore vermelho desenhado por Oscar Niemeyer. A partir daí, tudo começou a desmoronar. A própria ideia de “país” ficou questionada porque, na realidade, tínhamos virado um arquipélago de poucas ilhas de vida social, cercadas de merda por todos os lados.
Alguns chegaram a sugerir que o Brasil fosse cortado em pedaços, ficando o “capitalismo escroto neoliberal” em São Paulo e o Nordeste com uma espécie de socialismo feudal, uma mistura de Renan, 96, com o bolivariano ex-Maduro, devorado por milícias famintas em 2025.
A corrupção diminuiu muito nessa época, não pela operação Lava Jato, mas porque não havia mais grana nenhuma no Tesouro para roubar.
Brasília ficou mais vazia. Como abastecer aviões públicos e privados sem combustível?
Poucos políticos vagavam pela praça dos Três Poderes abordando até transeuntes em busca de algum bom negócio. Eduardo Cunha, 87, acusado do assassinato de Janot, foi morar em um truste na Suíça. Nessa fase, houve o Segundo Crash da Bolsa de NY, entre nuvens de suicidas e filas de desempregados.
Aqui foi uma surpresa. O Brasil afundou mais ainda, e nada aconteceu. Houve, claro, legiões de famintos atacando os supermercados, mas logo ficou claro que a miséria é autorregulável. Muito simples, explicaram os acadêmicos: a fome diminui a população, dado benéfico para a incrível falta de comida, provocada pela decisão acertada do governo de jamais cortar gastos fiscais.
As lembranças me emocionam por sua dor e delícia. Sofro com o fim do país, mas sorrio com um prazer meio perverso, rememorando os estrambóticos delírios da política porra-louca. A fila andou. Consegui entrar no supermercado com minha carteira de consumidor na mão. Mostrei minhas digitais. Numa prateleira, ainda há uma caixa de biscoitos. Corro, mas um cara chegou antes e levou. Pergunto ao agente militar do supermercado onde é que está o papel higiênico.
Acabou, disse ele. E, ao ver meu suspiro de desconsolo, riu irônico e acrescentou: “Limpa com o dedo!…”
Por Arnaldo Jabor, jornalista que dispensa apresentações