18/06/2016 12:21
Cresci e nunca entendi. Mesmo mudando de hábitos, deixando as brincadeiras de lado, podendo falar cu sem censura nas rodas de família e tudo o mais.
Quem reconheceria o próprio ódio como peso catalizador para arrancar vidas à força, à base da violência covarde?
As tentativas de matar o que não morre são diárias. Lá está o ódio, todo aparelhado na polícia, no Estado, nos nossos parentes irredutíveis, fiscais de cu alheio, nas senhoras de bem que vão à igreja…
Em uma dessas conversas de família, quando homens velhos, adolescentes entediados e tias distantes reúnem suas diferenças envolta de uma mesa farta, lembro de ouvir um parente dizer em formato argumentativo-explicativo-ditatorial: “Tudo bem ser gay, namorar, casar, gostar de outro homem, mas dar o cu, não. Isso eu não admito”. E todos abriram pequenos sorrisos naturais e começaram a discutir um monte de regras cagadas pelo cu dos outros. Eu tinha nove anos e só queria soltar pipa, jogar bola de gude, repetir a sobremesa. Pouco me importava o cu alheio, é a verdade. E cheguei a pensar intrigado por que diabos existiam tantos fiscais revoltados de cu – uma palavra que criança nem podia repetir em voz alta.
Cresci e nunca entendi. Mesmo mudando de hábitos, deixando as brincadeiras de lado, podendo falar cu sem censura nas rodas de família e tudo o mais. Nada mudou. Com exceção da descoberta de um tempero chamado ódio.
Um ódio naturalizado em formato de piada, fantasiado em padrões binários que nos dizem o que é o prazer, o amor e como podemos senti-los. Um ódio distorcido por regrinhas morais de bons costumes. Um ódio que se passa por bom e se sente no direito de invocar Deus – ou isso que as pessoas chamam de Deus – tardiamente, apenas para rezar com a hipocrisia habitual por almas que não foram aceitas na Terra. Isso é o pior.
Talvez alguns filósofos, psicanalistas e gurus da vida livre possam dissertar sobre o sentimento fervoroso da cólera. Talvez alguém esclareça que a natureza humana está entre o amor incondicional e a fúria incontrolável. Mas quem seria capaz de assumir no próprio lombo os assassinatos racistas, estupros coletivos e homofobias sanguinárias? Quem reconheceria o próprio ódio como peso catalizador para arrancar vidas à força, à base da violência covarde?
Nos últimos dias, após o massacre de Orlando que matou 50 pessoas na boate Pulse, muita gente lembrou uma observação crucial sobre a morte do irmão do Zé Celso Martinez, Luís Antônio Martinez Corrêa, gay, assassinado com 107 facadas, em 1987. Mas porque, se um, dois, três, quatro golpes seriam suficientes para tirar a vida de alguém? Porque “tentam matar o que não morre”, escreveu o Matheus Rodrigues no Facebook.
As tentativas de matar o que não morre são diárias. Lá está o ódio, todo aparelhado na polícia, no Estado, nos nossos parentes irredutíveis, fiscais de cu alheio, nas senhoras de bem que vão à igreja. Lá está ele, dizendo que a saia curta, o beijo gay, o índio vivo e o jovem negro bem vestido não podem existir assim, como se fossem normais. Até o Bob, um cachorro, xodó da favela de Heliópolis, foi morto com um tiro de revólver por latir e, supostamente, ter irritado um policial.
Eu continuo sem saber de onde vem toda essa raiva. Mas prefiro ficar com as palavras da Willa Naylor, uma americana de 7 anos transexual, que combate o ódio com uma frase. “Nós devemos apenas ter permissão para viver como nós somos, porque sabemos quem somos”.
Por Lucas Simões em O Tempo