30/08/2016 12:31
“É muito difícil desenvolver este país de merda, desculpem o termo. Por isso, temos de destruir o capitalismo por dentro, já que não dá mais pé uma revolução russa.”
Eu vos escrevo do passado. Hoje é o dia D de Dilma. Como terá sido o discurso de Dilma no Senado? Bem, fazer mea-culpa nem pensar. Eu a entendo. Ninguém sai na rua ou vai ao Senado para bater no peito e dizer: “Eu sou um (a) incompetente, eu sou responsável pela quebra do país!” Tudo bem, mas a autocrítica era um hábito recorrente durante aquele ex-socialismo que ainda viceja nas cabeças petistas. Lembro-me da hilariante autocrítica de um alto dirigente chinês durante a Revolução Cultural: “Eu sou um cão imperialista, eu sou o verme dos arrozais…”
E, como estou no domingo passado, me pergunto: como terá sido o discurso? Sem dúvida, Dilma falou com sinceridade total (não é ironia), falou de sua alma revolucionária.
O discurso de Dilma é para ela mesma. Para se convencer fundamente de que não cometeu erro algum. Vocês já viram. Eu imagino:
“Começo dizendo que minha consciência está em paz. Quando entrei em 2010, o Brasil estava ameaçado por ideologias reacionárias: a social-democracia, o neoliberalismo, mas eu restaurei o essencial: a luta contra o imperialismo norte-americano, contra a desnacionalização de nossas riquezas, contra essa sociedade de empresários irresponsáveis e também contra o lucro. Fiz o fundamental: coloquei o Estado no topo, no centro de tudo, pois de lá emana a verdade para essa sociedade de ignorantes, essa classe média reacionária, como bem acusou nossa filósofa. O Brasil é tão frágil que só um grande Estado provedor pode proteger as massas nas lutas sociais que elas nem sabem que estão travando; mas eu sei, porque nós somos a consciência do povo.
“Sou acusada de ter dilapidado as contas do país, rompendo a Lei de Responsabilidade Fiscal. Rompi, sim. Pois eu tive orgulho de usar o Estado e seu tesouro acumulado para estimular o consumo tão ansiado pelos pobres-diabos, sim, mesmo que os cofres públicos tenham ficado vazios para investir. Populismo? Eu chamo de ‘catequese’, conquista de adeptos para o grande futuro que virá! Gasto público é vida! Eu não podia ficar aprisionada naquela leizinha de responsabilidade neoliberal que o FHC inventou. Fiz isso, sim, porque meus fins justificavam esse meio; o fim era garantir apoio para as próximas eleições do nosso PT, para ficarmos no poder desse país alienado até a chegada do futuro socialista.
“Eu fiz tudo certo. Distribuí cargos sem fim, dei verbas gordas para seus currais, nobres senadores. Fiz isso porque sei que, às vezes, é preciso praticar o mal para atingir o bem. Será que o Maquiavel disse isso?
Eu sabia de tudo, eu sabia que a compra da refinaria de Pasadena ia ser um rombo pavoroso, confesso, mas como conseguir dinheiro para minha reeleição sem propinas? Propinas de esquerda, é claro. Por isso, fiz vista grossa, sim, quando aquele Cerveró me entregou uma página solta, com uma piscadinha do olhinho vesgo.
“Tenho orgulho de tudo que fiz. Menti na campanha, dizendo que não ia ter comida no prato do povo, menti nos bilhões que arranquei dos bancos para esconder o déficit público. Mas foram mentiras que chamo de ‘corrupção revolucionária’. Ah, esse meu povo, tão ignorante, desvalido. A miséria me fazia feliz. Explico: denunciar a miséria era um alívio para minha consciência. Desculpem a emoção (chora), mas há uma pureza doce na miséria que me comove muito (lágrimas). Mas nós, do PT, somos os sujeitos da história e, apesar de vossa injustiça contra nós, vamos construir o paraíso social.
“Meus fins uniram o país. Sim, uni vocês até mesmo contra mim, porque confundiram minha sutileza ideológica com incompetência, acharam que eu errava, sem saber que meu acerto era no futuro. Nunca errei. Não me arrependo de nada. Houve corrupção? Sim, mas adstrita a alguns elementos desonestos que traíram nossa missão. Dizem que roubamos; não, a palavra não é essa – é apenas a ‘desapropriação’ de um tesouro comprometido com metas neoliberais… Isso é o que fizemos.
“É muito difícil desenvolver este país de merda, desculpem o termo. Por isso, temos de destruir o capitalismo por dentro, já que não dá mais pé uma revolução russa. Mesmo uma avacalhação é mais revolucionária – seria uma espécie de ‘esculhambação criativa’ para arrasar administrações de direita.
“Foi isso que fez nosso líder Chávez, assassinado pelos imperialistas que lhe injetaram câncer no corpo e, depois que ele virou passarinho, passaram a roubar até os alimentos do povo, botando a culpa em nossos irmãos bolivarianos.
“Nosso povo também não sabe se governar. Por isso, digo, democracia clássica como? Para nós, ‘democracia’ sempre foi uma estratégia para tomada do poder. E não era hipocrisia; era dialética histórica. Tínhamos de apoiar a democracia burguesa para depois fazer o centralismo democrático que tanto usou nosso grande irmão Stálin, injustiçado por aqueles dois fascistas Kruschev e Gorbachev.
“Eu sou inocente, pura, não tenho dinheiro na Suíça, e toda minha paixão lancinante pelo povo brasileiro foi confundida com desonestidade e incompetência. As massas ainda vão sentir a minha falta, debaixo de um governo neoliberal que só pensa em contabilidade.
“Vocês hoje me baniram, mas vão se arrepender no futuro, pois o Brasil nasceu torto e nunca será consertado, nem por Temer, nem por ninguém.
“Arrependei-vos, fariseus do templo, pois, como disse a querida Gleisi Hoffmann: esse Senado não tem moral para me julgar.
“Estou sofrendo um golpe. Sim, não adiantam rituais, votações; repito, sim, que é golpe tramado por essas instituições de direita, como o STF, o Congresso, o Ministério Público, a OAB, a Polícia Federal.
“Estou orgulhosa de mim. Como Getúlio, saio da Presidência para entrar na história. E, para terminar, cito o líder maoista João Pedro Stédile quando disse aos camponeses: ‘ Tenham filhos – eles conhecerão o socialismo!’ E eu acrescento: seus filhos vão respeitar minha imagem no futuro. Adeus!”.
Estou no passado, amigos leitores, mas deve ter sido algo mais ou menos assim. O que acham?
Por Arnaldo Jabor