Opinião – O cinismo da ”democracia”

17/11/2016 16:15

”Mostra-se ao mundo que os neurônios de nossos parlamentares são gastos num exercício do mais puro e absoluto cinismo para asfixiar ainda mais seu povo.”

Se era complicado entender as vitórias de Mauricio Macri na Argentina, de João Doria em São Paulo, de Alexandre Kalil em Belo Horizonte, o sucesso de Donald Trump nos Estados Unidos explicou tudo ao mundo inteiro.

Exaustão da política, dos modos, dos gestos, das palavras, dos discursos impolutos e ocos. Da oratória que multiplica as dúvidas, do jargão ególatra, ainda da indisfarçada sede de poder sem qualquer plano de governo. Não sabem nada de consertar os estragos, de conter a besta burocrática, os gastos vergonhosos.

Culpam os outros, escracham os adversários. Aqueles que bajulavam como cabos eleitorais, levando ao fundo do poço o respeito e a decência.

Trump e sua tosca dialética deixam claro que boa parte do “mundo que pensa” cansou, desesperou e se dispõe a qualquer solução para se livrar do velho. A rejeição à velha política vale mais que qualquer razão.

Há milhares de anos surgiu o Homo sapiens, de Cro-Magnon, versão mais avançada que o Neandertal, depois extinto. Aqui, na política nacional e mundial, neste momento, temos por que crer numa mutação?

Embora seja cedo para dizer que os primeiros modelos da nova espécie sejam capazes de resolver, fica evidente que a espécie anterior, degenerada no petrolão, não atende mais. Acabou.

Desponta uma sede de realismo, pragmatismo. Revela-se no deboche dos “caras” da velha política e no sarcasmo que, quando benzido de verdade, “viraliza” nas redes.

Eduardo Cunha abriu a picada de Curitiba para o Congresso chegar até lá. Os paradigmas se esfarelam. Transparência se insurge, e a acessibilidade coloca números e letras no lugar aonde nunca chegaram.

As construtoras que lideraram por 60 anos a ladroagem no país, e ergueram o maior caso de corrupção do planeta, delataram os intocáveis. Serão presos como Cunha.

Com a sujeira interrompendo os financiamentos e as propinas, o Congresso parece empenhado em manter seus valores e dar mais um golpe no povo. Colocar austeridade nas campanhas não interessa, precisam ser caras e ter dinheiro ao alcance de quem está no Congresso. É a melhor forma de garantir uma reeleição.

Já que não existe mais um milímetro quadrado para engrossar o nepotismo, as verbas indenizatórias, os salários de assessores, os aluguéis de carros, as contas de celulares, viagens, restaurantes, imóveis, supermercados, planos de saúde, precisam inventar agora ou dilatar os dutos existentes.

A Câmara gasta R$ 6 bilhões por ano (R$ 10 milhões por membro efetivo), e o Senado, R$ 4,4 bilhões. Mais de R$ 50 milhões por senador (!). Entretanto, isso não farta os congressistas insaciáveis. Perderam momentaneamente o butim das estatais, que precisa ser reposto?

Foi instalada na terça-feira na Câmara, a toque de caixa, para coincidir a votação exatamente com as distrações das festas natalinas, a comissão que trata da reforma política. Parte do PSDB e tem o apoio de todos.

Prevê a criação do “Fundo de Financiamento da Democracia” (FFD). Sigla que, traduzida em miúdos, tira 2% da arrecadação líquida do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) e a transfere aos cofres dos partidos políticos.

A ideia de “Neandertal” leva R$ 3 bilhões a cada ano para quem votará essa medida brilhante. Numa democracia, um Congresso decente levaria a referendo popular; aqui, não. Aqui somos mais espertos, legislando em causa própria e contra a economia popular.

Acrescentado com cinismo a palavra “democracia”, o Fundo Partidário será beneficiado com 414% de aumento, subindo de R$ 724 milhões para R$ 3 bilhões. Há dois anos era de R$ 180 milhões.

A verba alimenta farras despropositadas, num país que passa fome, além de inundar as campanhas eleitorais de quem votará a medida.

O autor do projeto é o deputado Marcus Pestana (PSDB-MG). A íntegra de sua proposta pode ser lida na internet. Pestana se preocupou em explicar à imprensa que as eleições municipais de 2012 (R$ 5,2 bilhões em gastos) e o pleito de 2014 (R$ 4,8 bilhões) requerem R$ 10 bilhões e ainda adicionou à cifra mais R$ 2 bilhões para “manter as portas dos partidos abertas” (atualmente R$ 724 milhões).

Quer dizer que os R$ 12 bilhões, tirados de quem trabalha, darão a cada quatro anos aos 594 congressistas (513 deputados e 81 senadores) mais um valor de R$ 20,2 milhões em média para cada!!!

Uma proposta dessa envergadura nenhum país mediamente civilizado aceitaria, e com ética abaixo do medíocre aceitaria, justamente com 12 milhões de desempregados, aos quais foram cortados os salários-desemprego.

Mostra-se ao mundo que os neurônios de nossos parlamentares são gastos num exercício de cinismo para asfixiar mais seu povo.

Deveriam os deputados que ganham R$ 470 mil por ano, em quatro anos R$ 1,88 milhão em salários, com verbas de gabinete mais R$ 3,2 milhões, em indenizações de despesas e viagens, R$ 2,8 milhões, agora com o “Fundo de Financiamento da Cleptocracia” irão mais R$ 20,2 milhões. Total de R$ 28 milhões por mandato.

Se alguém for a Brasília para um ato como o da Bastilha, em 14 de julho de 1789, me avise.

 

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Por Vittorio Medioli
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