STF – Ainda sobre a decisão estupefata contra a sociedade

19/02/2017 17:51

Decisão do STF impõe medidas urgentes de desencarceramento. É necessário reduzir substancialmente o uso de prisões provisórias, que hoje correspondem a 40% dos presos no Brasil

Por Marcos Fuchs e Vivian Calderoni

A bem-vinda decisão do Supremo Tribunal Federal, pronunciada na quinta-feira, 16, de estabelecer que é dever do Estado ressarcir os danos, inclusive morais, comprovadamente causados aos detentos em decorrência da falta ou insuficiência das condições legais de encarceramento, coloca os governos estaduais e federal diante de uma dura, porém inadiável, tarefa: é urgente revisar os mecanismos que propiciam o exponencial crescimento da população prisional no Brasil.

Segundo dados do Ministério da Justiça, o Brasil ocupa hoje a posição de quarto país com a maior população carcerária do mundo, com mais de 600.000 presos abarrotados em 370.000 vagas. Isso representa não apenas uma violação à integridade física, mas também falta de acesso a direitos como saúde, trabalho e educação.

Em visita aos presídios brasileiros em 2015, o então Relator Especial da ONU (Organização das Nações Unidas) contra a Tortura, Juan Méndez, foi categórico em relacionar a superlotação com o tratamento desumano: “Na maioria das prisões visitadas, as condições de detenção constituem tratamento cruel, desumano ou degradante devido à severa superlotação. Isso gerou uma atmosfera tensa, violenta e caótica dentro dos presídios, onde os maus-tratos físicos e psicológicos dos detentos (…) se tornaram a norma.”

Depois dos episódios de violência e mortes ocorridos em presídios do Norte e Nordeste do país no início do ano, essa decisão do STF corrobora a necessidade de reformar a estrutura do sistema carcerário, mas também a de revisar a legislação penal brasileira e o comportamento do Judiciário.

Em 25 anos, a população carcerária brasileira aumentou 575%, uma curva de crescimento que se acentuou na última década após adoção de uma nova política de drogas em 2006. Segundo dados do próprio Ministério da Justiça, 64% das mulheres e 25% dos homens estão presos hoje por crimes relacionados às drogas. Portanto, não se pode discutir a situação dos presídios brasileiro sem uma revisão profunda na abordagem da chamada “guerra às drogas”.

Outro ponto essencial para aliviar a superlotação dos presídios é reduzir substancialmente o uso de prisões provisórias, que hoje correspondem a 40% dos presos no Brasil. Em janeiro, o governo propôs a realização de uma força-tarefa de defensores públicos e de juízes para libertar presos que podem aguardar seu julgamento em liberdade — medida bem-vinda, mas que não apresenta mudança de paradigma.

Como política pública, é necessário investir na ampliação do acesso à Justiça, com uma quantidade de defensores públicos que atenda à demanda atual, assim como implementar em todo o território nacional as audiências de custódia — aquelas em que a pessoa presa em flagrante deve ser apresentada a um juiz no prazo de 24 horas para determinar ou não a necessidade da prisão preventiva.

Uma terceira medida para reduzir o número de presos no país passa pela mudança na mentalidade encarceradora das autoridades judiciárias. A legislação brasileira já prevê penas alternativas, mas elas são aplicadas em quantidade irrisória. O judiciário precisa considerar a aplicação de penas restritivas de direito em lugar da de privação de liberdade, sobretudo diante da incapacidade do Estado de assegurar a integridade física, de prover condições dignas de cumprimento da pena e de aplicar medidas de ressocialização.

No cenário de violações permanentes e ilegalidade do sistema prisional brasileiro, a decisão do STF é um reconhecimento histórico do problema e de que o Estado é único e exclusivo responsável pela situação degradante a que submete os presos sob sua tutela. A partir do momento em que o Estado pode ser onerado por suas violações dentro dos presídios, espera-se que governos, legisladores e representantes do Judiciário reconsiderem a lógica do encarceramento em massa como política de segurança pública.

Marcos Fuchs, diretor adjunto da Conectas Direitos Humanos; Vivian Calderoni, advogada do programa de Justiça da Conectas Direitos Humanos.
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