07/12/2018 13:25
”Não soa razoável que todo o trabalho do sistema de justiça criminal vire pó numa canetada. Isto agride a noção mais elementar de separação de poderes, pilar fundamental da nossa Constituição”
No final do ano passado, a perplexidade foi ampla, geral e irrestrita quando se soube da canetada do presidente acusado duas vezes de corrupção que concedia indulto Black Friday natalino aos corruptos –liquidação de 80% de suas penas.
Isto porque o funil da punição da corrupção e dos demais crimes do colarinho branco é estreito demais aqui e conseguir responsabilizá-los por seus crimes é tarefa reservada aos fortes e resilientes –as barreiras são muitas e monumentais, como a do foro privilegiado, que serve hoje como escudo a blindar os autores de crimes detentores de mandatos ou cargos poderosos.
Como se não bastasse, temos cifras negras pornográficas (índices de subnotificação dos crimes), inclusive por medo de retaliação. Temos também falta de proteção do Estado a quem colabora com a justiça, obstáculos processuais diversos, como o da prescrição, sendo certo que a modalidade retroativa só existe em nosso país –e por aí vai.
Conseguir condenar um corrupto no Brasil parece tão difícil como escalar o Monte Everest, arriscando-me a afirmar intuitivamente e pela experiência acumulada que muito menos de 1% dos casos ocorridos são punidos, já que é difícil até que sejam delatados.
Os corruptos contam com este baixo risco de punição e a consequente alta probabilidade de impunidade, que os alimenta, chegando ao ponto de criar numa empresa multinacional um setor especializado com o nome pomposo de Departamento de Operações Estruturadas, que nada fazia além de planejar e organizar a distribuição de propina, com recursos humanos, mobília, aplicativos e tudo mais, aparecendo no mesmo organograma em que também existe o departamento de compliance.
Registre-se que nos anos anteriores não havia esta prática de incluir corruptos como beneficiários do indulto. E em 2018, retorna-se ao formato que não inclui corruptos e outros criminosos do colarinho branco.
O STF barrou a concessão deste indulto de 2017 em liminar e agora começou a julgar o mérito do caso, cujo desfecho certamente impactará significativamente na percepção geral em relação à impunidade, já expressiva, já que o indulto existe para fins humanitários quando há excesso de encarceramento.
Em matéria de crimes contra o colarinho branco, temos o oposto, muito pouca punição, ficando a impressão que o sistema de justiça é um faz-de-conta pois pouco importa a decisão da Justiça –quem decide mesmo é o presidente da República. Parece uma volta ao Absolutismo.
Durante o período imperial, aliás, tínhamos o Poder Moderador ao lado dos três poderes de Montesquieu, mas já se passaram desde então quase 200 anos e o mundo mudou. Não se quer e não se aceita esta concentração de poder exagerada nas mãos do chefe do Executivo –ela gera uma amarga sensação de impunidade. Quanto custa a não punição da corrupção ao Brasil?
As hipóteses do indulto, da anistia, da graça, previstas na Lei Penal, servem em tese para remediar o possível excesso de encarceramento, decorrente da não intercomunicabilidade entre os magistrados no momento em que condenam individualmente cada caso.
Jamais pode, no entanto, ser instrumento de impunidade, e o poder entregue ao presidente de concedê-lo não é infinito nem absoluto. Aliás, o STF afirmou isto com clareza quando não permitiu a posse de uma ministra escolhida para a pasta do Trabalho, tendo em vista que ela ostentava condenações por violar as leis trabalhistas.
Na ocasião, a Suprema Corte decidiu que o princípio da moralidade pode limitar os poderes do presidente ao escolher seus ministros, assim como os demais princípios –da moralidade, legalidade e impessoalidade– também devem nortear o mandatário no momento em que concede o indulto.
Não soa razoável que todo o trabalho do sistema de justiça criminal vire pó numa canetada. Isto agride a noção mais elementar de separação de poderes, pilar fundamental da nossa Constituição que acaba de completar 30 anos.
O indulto, abstratamente portanto, pode até ter base jurídica, mas é remédio extraordinário e humanitário que se concebeu para reverter excessivo encarceramento, que definitivamente não existe em matéria de crimes do colarinho branco no Brasil em face do que se percebe que o presidente extrapolou de forma absurda ao editar o Decreto de 2017.
Desde John Locke, vem-se afirmando a importância capital da desconcentração do poder para a consolidação das democracias, cabendo como luva aqui o pensamento de Lord Acton quando afirmou que o poder tende a corromper e o poder absoluto corrompe absolutamente. Com a palavra, O STF.
Por Roberto Livianu, 50, é promotor de Justiça em São Paulo e doutor em direito pela USP. Atua na Procuradoria de Justiça de Direitos Difusos e Coletivos. Idealizou e preside o Instituto Não Aceito Corrupção. É comentarista da bancada do Jornal da Cultura, articulista da Folha de S. Paulo e do Estado de S.Paulo, e colunista da Rádio Justiça, do STF.