Opinião – Pela reabilitação histórica de dona Maria I

05/08/2019 12:37

”A rainha Maria I (…) figura central de nossa tradição política, embora pouco comentada, recebeu uma alcunha que talvez não lhe seja justa”

Ela não falava coisa com coisa. Ela tomava decisões esdrúxulas. Ela alimentava um radicalismo ideológico na contramão de seu tempo. Pasme: já houve governantes que viveram no Brasil com esse perfil. Inacreditável, não?

Não conduza tão depressa! As pessoas vão julgar que estamos a fugir –dizia ela, ao embarcar de Lisboa afoitamente para o Brasil (onde morreria anos depois) junto com a corte portuguesa em 1808, obviamente escapando como todos da iminente invasão das tropas napoleônicas.

A rainha Maria I, mãe de dom João VI, avó de nosso “libertador”, Pedro I, portanto figura central de nossa tradição política (embora pouco comentada), recebeu uma alcunha que talvez não lhe seja justa, sobretudo vista sob a ótica do tempo, à distância, sob o olhar de hoje: entrou para a História como “Maria Louca”. Pois ela perdera seu querido 01, o filho primogênito e herdeiro, dom José.  E assim a figura mais poderosa do reino se tornou o 02, seu filho dom João, que se tornaria depois regente. Trama impressionante não? Daquelas que acontecem uma vez e nunca mais.

A vida colocou diante da rainha dona Maria I alguns desafios dignos da mitologia. E o epíteto “louca”, visto sob o olhar de hoje, será justo? Afinal, terá sido ela a única ou o único governante louco que tivemos? E se tivemos outros, onde está a equidade? Por que somente ela merece tal predicado? O atual ministro da Educação, por exemplo: é um servidor dedicado a rever certos cacoetes incrustados na narrativa histórica convencional. Ministro, há algum outro governante louco em nossa história que poderia fazer par com dona Maria I? Se sim, quem? Quais? Isso deveria ser questão do Enem?

Dona Maria I também era chamada de “a piedosa”, embora algumas descrições daquele tempo fossem bastante cruéis sobre seu estado mental. Consta que, certa vez, em março de 1790, ela ordenou a execução pública de três homens que foram condenados por roubos e assassinatos. Dona Maria Louca fazia isso movida pela ideologia: queria reafirmar os princípios da monarquia absolutista num momento em que esse regime estava sendo contestado pelo autodeclarado imperador Napoleão. Talvez se perguntada sobre a sentença de morte por uma questão de ideologia, a rainha delirante respondesse:

– São idiotas úteis!

O fato é que esse tipo de sentença já estava caindo em desuso em Portugal. Por causa do inusitado, muitas pessoas se reuniram na praça principal de Lisboa para assistirem àquela cena. A brutalidade com que os presos foram mortos chocou a população, fazendo-os se arrependerem por sua curiosidade. Maria Louca criava fatos políticos, chamava atenção das massas, mas com o passar do tempo, sua capacidade de criar tantas e tantas endiabradas novidades (embora fosse casta e religiosa; o sentido aqui é figurado, frise-se) acabou pespegando-lhe a fama de louca em todos os seus atos. Ninguém mais falava “Portugal, pátria amada”. Só falavam: Portugal, terra da Maria Louca. Coitada. Nos bastidores, sabe-se hoje, a rainha estava mesmo meio tan tan.

O Secretário dos Negócios Estrangeiros, Luís Pinto, escreveu uma carta ao embaixador português em Londres, relatando na época alguns acontecimentos:

– É com grande tristeza que o informo de que Sua Majestade está a sofrer de uma aflição melancólica que degenerou em insanidade, até ao que se receia que seja o delírio total. Tendo em vista esta infeliz situação, acredito que seria benéfico que o Dr. Willis, o médico principal que assistiu a Sua Majestade Britânica em circunstâncias similares, viesse a esta corte logo que possível. Proporcionar-lhe-emos todo o dinheiro necessário, sem limitações. Concordaremos com tudo o que proponha, se tiver de celebrar um contrato com ele, e deixará a remuneração à discrição generosa desta corte […]. A rainha teve sempre um temperamento melancólico e sujeito a aflições nervosas. A sua disposição é de grande submissão e tem uma certa timidez, a sua imaginação é viva e os seus hábitos inclinam-se para a espiritualidade. Desde há muitos anos que tem vindo a sofrer de dores de estômago e de espasmos no abdômen, com tendência a piorarem devido à aversão que tem a remédios purgativos, especialmente clisteres que nunca consentia.

Mas aí é que está: dona Maria I (não gosto de chamá-la de louca e proponho que respeitemos esse mito de nossa história) foi um fenômeno como gestora! O Paulo Guedes dela (não vou chamar de posto Ipiranga porque nem tinha gasolina naquela época e aí eu é que vou ficar com a fama dela) era um azougue. “O comércio e a indústria prosperaram, a balança comercial exibiu o seu primeiro saldo positivo desde havia décadas, o tesouro conheceu alguns anos de relativo desafogo, as letras, as artes e até a ciência floresceram”, escreve Oliveira Marques em seu livro História de Portugal.

Pois veja, querido leitor, querida leitora, que personagem fascinante e único de nossa história: não falava coisa com coisa, tomava decisões descabidas, seu senso de humanidade às vezes se obliterava por causa de seu radicalismo ideológico, mas sua agenda econômica –no geral– estava no rumo certo. Apesar de, no essencial, dona Maria I ter acertado, ainda sim seus impulsos incontroláveis e cada vez mais imprevisíveis acabaram criando constrangimentos crescentes dentro e fora da Corte. E sua fama de louca se espalhou a ponto de virar seu sobrenome! E a ponto de ser diagnosticada como irreversivelmente capaz de governar, em 1799. Pois eu não acho justo dona Maria I ser chamada de Maria Louca. Ou todos os governantes desequilibrados que tivermos tido são assim qualificados ou nenhum! A lei é para todos. Ou não é?

Por Mário Rosa, 54 anos, é 1 dos mais renomados consultores de crise do Brasil. Foi o autor do prefácio do primeiro plano de gerenciamento de crises do Exército Brasileiro. Atuou como jornalista e consultor

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