06/08/2019 15:20
”Decisões recentes de ministros do STF contrariam o princípio da igualdade perante à lei. A sociedade espera que sejam revertidas pelo Plenário”
Desde o filósofo John Locke, no século XVII, no campo da filosofia política vem se fortalecendo progressivamente a ideia da desconcentração do poder do Estado. Na mesma direção, vêm-se estabelecendo e sedimentando os pilares do sistema republicano democrático, a partir do século seguinte.
Neste contexto, as ideias iluministas nos legaram importantes conceitos que impactaram nos ordenamentos jurídicos de muitos países do mundo ocidental democrático, especialmente nas esferas constitucional, penal e processual, surgindo a separação dos poderes, isonomia, o devido processo penal mediante contraditório, assim como o duplo grau de jurisdição.
De uma forma ampla, o cidadão passa a estar mais protegido em relação a abusos do Estado não mais absoluto, agora com poderes limitados e desconcentrados, que devem ser exercidos dentro de referenciais éticos e isonômicos.
No campo da justiça, não mais se admitiriam condenações que não estivessem baseadas em provas, que impusessem penas desumanas. Não mais se admitiria processo em que não houvesse equilíbrio, estabelecendo-se o direito de rebater as provas, o direito ao recurso com exame jurisdicional colegiado.
Vividos mais de dois séculos de amadurecimento e assimilação de todos estes novos e revolucionários paradigmas civilizatórios, eis que o mundo se vê aturdido pela prática da corrupção, da lavagem de dinheiro e demais crimes do colarinho branco, que ensejaram um grande movimento internacional anticorrupção a partir das últimas três décadas do século XX, cujo ponto crucial é a convenção antipropina da OCDE de 1997, da qual somos subscritores.
O mundo vem cooperando para prevenir e combater estes delitos, assim como outras modalidades do crime organizado, como o narcotráfico, o terrorismo e o tráfico de pessoas, enaltecendo-se a importância do trabalho dos organismos de monitoramento de operações financeiras, o que levou à criação do GAFI em 1989, que une nações neste sentido – o Brasil o integra.
No entanto, recentemente, o presidente do STF, na condição de plantonista, em caráter monocrático, portanto, decidiu proibir o envio de notificações de operações financeiras suspeitas do COAF (órgão estatal que monitora movimentações financeiras no Brasil) ao Ministério Público (órgão estatal dotado de poder constitucional de investigação e incumbido de proteger a sociedade no plano coletivo), exigindo autorização judicial para acesso a informações, na contramão do que se pratica em todo o mundo ocidental democrático.
Como se não bastasse, também monocraticamente, outro ministro do STF, na última semana, determinou suspensão de trabalho investigativo da Receita Federal por suspeita de quebra de sigilo de ministros do STF, como se estes tivessem o direito a tratamento tributário especial, distinto do recebido por outros magistrados, membros do MP, prefeitos, governadores, deputados ou senadores, que cotidianamente são fiscalizados sem barreiras (e assim deve mesmo ser) pela Receita.
Sem podermos nos esquecer do “inquérito sobre fake news”, em que o STF impulsionou a investigação, preside-a determinando providências cautelares, julga matéria jurídica e decidirá o destino do caso já com a “prova colhida”, evidenciando-se caso de notória concentração de poderes e desrespeito ao princípio que determina sua separação
O princípio da igualdade de todos perante a lei ou vale para todos ou simplesmente não deve existir. Por isto também é que precisamos extinguir o foro privilegiado, que o afronta de forma inaceitável e inconcebível.
Além disso, tribunais, inclusive superiores, tem na sua essência existencial o princípio basilar da colegialidade (julgamentos por câmaras ou turmas), não sendo razoável que a extrema excepcionalidade que justifica decisões monocráticas, para tutela de urgência, torne-se aos poucos o dia-dia da justiça, que pode comprometer o princípio, gerar instabilidade às instituições e perda de segurança jurídica e da credibilidade social do Judiciário.
A sociedade espera que os assuntos sejam submetidos ao pleno do STF, que deverá rever tais decisões para o bem da sociedade, prevalência do interesse público e bem comum.
O Judiciário não pode se hipertrofiar e se transformar em um Poder Moderador como tivemos em nossa primeira Constituição, de 1824, devendo-se respeitar os demais poderes republicanos bem como os parâmetros estabelecidos para o exercício do poder jurisdicional – é questão de concretização da lógica republicana dos freios e contrapesos, em que ninguém, nem mesmo os Ministros do STF estão acima da lei.
Por Roberto Livianu, 51, é promotor de Justiça em São Paulo e doutor em direito pela USP.