12/08/2019 16:29
“Desmatamento não começou quando o Inpe passou a medi-lo. Já havia uma perda acumulada de mais de 340 mil quilômetros quadrados antes de 1988”
O fato de eu discordar de Xico Graziano em quase tudo nunca me impediu de admirá-lo. Sempre tive no agrônomo paulista a referência de uma voz ponderada no agronegócio. Alguém que não apenas entende seu campo de atuação, como tem as antenas voltadas para as transformações da sociedade e do próprio agro, em especial na sua relação com os sistemas naturais.
Foi coçando a cabeça, portanto, que li o artigo “A teoria do desmatamento inteligente”, publicado neste site no último dia 7. O texto é de um grau de panfletagem que eu esperaria ver da trupe de maníacos da bancada ruralista, mas jamais de Xico Graziano – salvo no evento improvável de uma criatura alienígena ter-lhe invadido o cérebro.
Graziano começa citando a demissão de Ricardo Galvão do Inpe e papagaiando o chavão do bolsonarismo sobre meio ambiente: qualquer visão discordante é “simplismo” e “luta ideológica”. Não se ouviu do professor, em nenhum momento da longa fritura de Galvão, uma palavra sequer contra o ataque covarde e desonesto de Jair Bolsonaro e do antiministro do Ambiente Ricardo Salles ao Inpe. Para alguém que adora evocar a ciência em temas como agrotóxicos, trata-se de uma seletividade de argumentos notável.
A teoria delineada por Graziano se baseia em dois argumentos centrais: o de que a produção agropecuária do Brasil não pode prescindir do desmatamento da Amazônia e o de que só um pouquinhozinho da Amazônia foi desmatado até agora – então “talkei” derrubar mais, se com critério.
O primeiro argumento vem tendo sua falsidade demonstrada desde 2006 pela insuspeita indústria da soja: o setor vem mantendo a restrição à compra do grão de áreas recentemente desmatadas.
O segundo argumento decorre de uma chicana retórica: Graziano força uma distinção entre “Amazônia natural” (o bioma) e “Amazônia legal” (a área total dos nove Estados da Amazônia, que inclui outros biomas) para relativizar os índices de desmatamento. Isto é, perdoem meu francês, bullshit.
Alega o professor:
“Quando o governo, ou o INPE, divulga os dados sobre desmatamento na Amazônia, ele normalmente se refere ao território geográfico da Amazônia Legal.”
Este é um erro primário. Os dados do Inpe se referem exclusivamente às áreas de floresta na Amazônia. Os cerrados e campos são considerados “não floresta”. Não é tão difícil verificar isso: a metodologia do sistema Prodes, que dá a taxa anual, é aberta e pode ser consultada aqui.
“Em segundo lugar, embora o desmatamento seja grave, os números indicam uma situação suportável. Somando-se toda a supressão florestal na Amazônia Legal, monitorada entre 1988 e 2017, resulta em uma área de 428,1 mil km². Em 30 anos, o desmatamento da Amazônia Legal, incluindo, portanto, a vegetação dos cerrados, atingiu 8,2% da área total. Não é um exagero.”
Como dizia Wolfgang Pauli, isso não está nem sequer errado.
Primeiro, 428 mil quilômetros quadrados são um bocado de chão. Desde o assassinato de Chico Mendes, desde que a Constituição foi promulgada, desde que Emma Stone nasceu e que Cocada deu o título carioca ao Vasco, a Amazônia perdeu o equivalente a três Inglaterras e uma Bélgica. Todos os anos, a Amazônia perde em florestas mais do que a Mata Atlântica perdeu nos 150 anos entre 1700 e 1850.
Mas o desmatamento não começou quando o Inpe passou a medi-lo. Já havia uma perda acumulada de mais de 340 mil quilômetros quadrados antes de 1988. No total, segundo o próprio Inpe, a floresta amazônica já perdeu 790 mil quilômetros quadrados – quase 20% da cobertura original. São duas Alemanhas e duas Bélgicas somadas. É, sim, um exagero.
Se você acha isso chocante, espere até eu te contar o que foi feito dessa área desmatada. Segundo o projeto TerraClass, 63% da área perdida de florestas virou pastagem ocupada com um boi por hectare ou menos. Outros 20% estão abandonados. Os municípios campeões de desmatamento estão entre os mais subdesenvolvidos e violentos da Amazônia e do país. Por outro lado, o PIB agropecuário amazônico quase dobrou no período da queda nas taxas de desmatamento. Curioso, né?
“Considerando a tendência histórica de redução no desmatamento, é um mito supor que a Amazônia vai desaparecer ou entrar em colapso ambiental. Felizmente.”
As taxas de desmatamento do passado recente pouco informam sobre o futuro: caso triunfem as concepções peculiares e anticientíficas do bolsonarismo sobre “produção” e “desenvolvimento”, o desmatamento pode voltar aos patamares históricos de 19 mil quilômetros quadrados por ano ou mais, segundo mais de uma projeção. Quem discorda dessas avaliações pode rodar os próprios modelos e publicá-los num periódico científico como a Nature Climate Change.
O artigo segue com o mantra ruralista de que “quem desmata é assentado e madeireiro”, quando ele próprio afirma que a maior fatia do desmatamento ocorreu em propriedades privadas. E recorre ao fetiche do zoneamento ecológico-econômico para determinar quais porções da Amazônia poderiam ser entregues ao corte raso. O zoneamento não é uma bala mágica: no Pará ele ajudou a criar unidades de conservação, mas em Rondônia ele não impediu o desastre ambiental e em Mato Grosso o governo simplesmente desistiu dele.
Quem defende o desmatamento na Amazônia hoje está, voluntária ou involuntariamente, defendendo o crime. Segundo o MapBiomas Alerta, sistema recém-criado de validação de alertas de desmatamento, 95% do desmatamento feito no primeiro trimestre de 2019 foi ilegal. Vários outros cruzamentos de dados põem a ilegalidade em torno de 90% na Amazônia. É desmate frequentemente especulativo, um quarto dele em terras públicas invadidas. Por ser criminoso, não gera riqueza, nem empregos. É uma contradição do regime bolsonarista e de seus áulicos prometer “lei e ordem” no país e apoiar a bandidagem na Amazônia.
O Brasil já se comprometeu a zerar o desmatamento ilegal até 2030. Cientistas e ambientalistas vêm há alguns anos propondo o próximo passo lógico: zerar todo o desmatamento. Existe área disponível para isso. E existe tecnologia agropecuária também: a adubação e a construção de cercas conseguem quadruplicar a capacidade de suporte de pastagens na Amazônia, multiplicando a renda do produtor na mesma área. O que falta para isso se disseminar é um sinal regulatório, com extensão rural e crédito diferenciado ao produtor, e Ibama no cangote dos ilegais. Não é fácil, mas até 2004 também se pensava que fosse impossível controlar o desmatamento.
Supor que conservação é antônimo de produção e que a única maneira de conciliar as duas coisas é criar “territórios livres de Ibama” na Amazônia é ofensivo ao espírito empreendedor que fez do Brasil o quarto maior produtor de alimentos do mundo. O desmatamento precisa ser tratado pelos agentes públicos e privados como uma falha de mercado, não como uma necessidade do sistema.
Se o agro é tão “tech” quanto se vende, já deveria ter entendido que inteligente é não desmatar.
Por Claudio Angelo, 43 anos, é coordenador de Comunicação do Observatório do Clima e autor de “A Espiral da Morte – como a humanidade alterou a máquina do clima” (Companhia das Letras, 2016)