20/07/2020 00:37
”Isolamento mudou perfil do consumo. Endividamento foi a patamar recorde. Programas sustentam a demanda. Renda Brasil é opção para o futuro”
A crise gerada pela covid-19 obrigou o governo a tomar medidas drásticas para preservar a saúde pública. A mais importante foi a instauração do isolamento social, obrigando diversos estabelecimentos considerados não essenciais a fecharem, e outros a trabalharem com restrições. Com isso, a população alterou suas prioridades de consumo e vem se adaptando a novos modelos de compras.
Os impactos desses novos hábitos já são revelados nas receitas do comércio. A inflação é outro canal também influenciado por esse movimento. O nível inflacionário é afetado pela relação entre oferta e demanda, em que ao se reduzir a demanda por um dado produto ou serviço, seu preço tende a cair, enquanto o aumento na procura por esse bem leva a um aumento de seus preços.
Os resultados do IPCA de maio mostraram que o isolamento social naturalmente reduziu o consumo de bens e de serviços, o que levou a um movimento deflacionário. É o 2º mês em que a inflação está negativa, com taxa de -0,31% em abril, e de -0,38% em maio. Com isso, o IPCA acumulado no ano ficou em -0,16%. Para esse ano as expectativas são de que o IPCA termine abaixo do intervalo de confiança, o mercado espera inflação perto de 1,53%.
As taxas negativas no índice de preços que norteia o regime de metas também reflete os novos hábitos de consumo das famílias. Enquanto parte do comércio essencial manteve aberta durante a quarentena, o isolamento fez com que a grande maioria dos estabelecimentos que ofertam serviços fossem fechados. Com isso, os preços dos serviços no IPCA de maio caíram 0,45%. Essa redução do consumo de serviços pode estar viesando a coleta de preços do setor nesse período.
Já os bens duráveis, que são importantes para que as famílias permaneçam confortáveis em suas casas, tiveram um aumento de preços de 0,5%. Os bens não duráveis, que incluem alimentos, apontaram inflação de 0,11%. Esses resultados mostram que as novas prioridades dos consumidores são os bens de consumo, que passaram a substituir o que antes era consumido via serviços.
Ainda não existe uma data definida para o isolamento se encerrar totalmente, por isso não se é possível definir quando os hábitos das famílias irão se restaurar. Além disso, mesmo quando a população tiver permissão para sair, os efeitos da quarentena podem ser permanentes. Muitos consumidores adotarão permanentemente os novos hábitos, e, portanto, as relações de demanda e oferta podem não voltar a ser exatamente como antes.
Um dos benefícios do baixo nível inflacionário é a manutenção do poder de compra dos consumidores. Nesse período de crise, a renda de muitos trabalhadores foi reduzida, e a deflação ajuda a manter a renda real em um patamar razoavelmente próximo ao anterior.
Uma das medidas do governo para tentar conter os desligamentos foram as suspensões e flexibilizações temporárias dos contratos de trabalho. Apesar de se manterem no mercado de trabalho com o vínculo empregatício, os trabalhadores submetidos a essas possibilidades estão com rendimentos menores.
Já para auxiliar a população mais vulnerável e os informais a recuperarem ao menos parte de suas rendas o governo acertadamente adotou transferências diretas pelo coronavoucher.
Além dessas iniciativas que estão freando perdas nominais maiores nas rendas, as famílias também estão recorrendo com algum sucesso ao mercado financeiro. Segundo dados de junho da Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (PEIC), apurada mensalmente pela CNC com cerca de 18 mil famílias em todos os estados do país, o endividamento continua em tendência ascendente, influenciado principalmente pelas famílias que recebem menos de 10 salários mínimos.
A proporção de endividados atingiu mais de 67% do total das famílias brasileiras, o maior percentual da série histórica do indicador. Esse recorde revela que os consumidores estão conseguindo aumentar suas receitas e minimamente manter seu consumo também via crédito, além do benefício da deflação no orçamento doméstico.
Como exemplos do coronavoucher, o governo agora estuda a adoção de um novo e mais amplo programa de transferência de renda às famílias mais necessitadas, o Renda Brasil. O programa deverá atingir um número maior de pessoas do que o contingente atual de beneficiários do Bolsa Família, e deverá unificar outros programas sociais como o abono salarial e o seguro famílias.
Assim, além do maior público beneficiado, os trabalhadores informais, que não eram atingidos pelo Bolsa Família ou outros programas governamentais, passarão a integrar o grupo dos beneficiários e poderão manter seus rendimentos durante a recuperação da economia.
O contexto do novo normal é marcado por mudanças comportamentais que estão afetando os preços, e ajustes nos programas assistenciais poderão ajudar a recuperação da demanda dos consumidores. O importante é tentar manter a renda dessas famílias.
Por Carlos Thadeu de Freitas Gomes, 72 anos, é economista-chefe da CNC (Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo). Foi presidente do Conselho de Administração do BNDES e diretor do BNDES de 2017 a 2019, diretor do Banco Central (1986-1988) e da Petrobras (1990-1992).