31/07/2020 00:54
Voluntário usa máscara de proteção ao distribuir comida em frente ao Hospital Regional da Asa Norte, em Brasília. O local é referência para tratamento de covid-19
Há sinais de recuperação em várias partes da economia global, a partir de maio, depois do mergulho depressivo imposto pela covid-19. Tais sinais surgiram depois do abrandamento de restrições sobre a mobilidade estabelecidas para o achatamento das curvas da pandemia, bem como das políticas de achatamento da curva da recessão implementadas pelos países (transferências de renda para parte da população, linhas de crédito para firmas vulnerabilizadas e outras).
Além de permanecer longe de devolver a perda de PIB, em todos os países, a recuperação enfrenta dúvidas quanto a seu fôlego. Há uma mesma sequência em cada país, mas há diferenças decorrentes dos ritmos da pandemia e da eficácia, magnitude e extensão das políticas de achatamento da recessão. O ritmo da pandemia importa não apenas pela possibilidade de retorno de restrições à mobilidade mas também por afetar o comportamento de consumidores. Não por acaso os sinais de recuperação são mais fortes na indústria e bem mais fracos nos segmentos de serviços que envolvem aglomeração de pessoas.
Tome-se, por exemplo, a China. Seu PIB cresceu 3,2% ao ano no segundo trimestre, acima das expectativas mas ainda deixando o nível de seu PIB com um declínio de 1,6% na primeira metade do ano. Por outro lado, as vendas no varejo desapontaram. Deverá ser a única economia grande a mostrar crescimento no final do ano (1%), mas bem abaixo do que apontava sua trajetória pré-covid.
Cabe notar o recurso chinês aos mecanismos de endividamento que foram aplicados depois da crise financeira global de 2008-09 e que levaram a preocupações quanto a sua estabilidade financeira. Quedas nas bolsas chinesas na quinta-feira passada repercutiram em Wall Street e nas bolsas na Europa.
Veja-se o caso dos Estados Unidos. O relatório do Federal Reserve Bank -“livro bege”- divulgado quarta-feira passada mostrou aumento de atividade em todos os distritos, mas longe dos níveis pré-covid. A produção industrial subiu 5,4% no mês de junho, com destaque para a normalização da produção de automóveis e suas partes. Por outro lado, os indicadores de alta-frequência para os serviços revelam níveis bem inferiores aos anteriores à pandemia.
Níveis de emprego subiram em maio e junho (2 e 3 milhões, respectivamente). Contudo, em grande medida foram a reversão de demissões temporárias, acompanhando o retorno da mobilidade. Enquanto isso, o grupo de desempregados permanentes e pessoas em busca de trabalho aumentou em 2 milhões.
Já na Europa, o mergulho provocado pela covid-19 foi mais profundo que nos EUA e a recuperação mais rápida. A produção industrial caiu 29% em março e abril, ganhando de volta 14% em maio. Com serviços também ficando para trás.
No Brasil, a queda no PIB do segundo trimestre foi menor que a esperada, entre outros motivos pelo fato de que o auxílio emergencial desembolsado pelo governo federal até o fim de maio foi maior que as perdas na massa salarial no país até então. Dúvidas se colocam, contudo, quanto a novas surpresas positivas na segunda metade do ano, até porque tudo dependerá do ritmo de recuperação do emprego informal ao final das transferências emergenciais em agosto. Na segunda metade do ano, tudo dependerá do ritmo de novas infecções, pois este continuará afetando negativamente a economia, até porque o comportamento de consumidores tende a refletir aquele ritmo independentemente de eventuais retornos a restrições de mobilidade.
Qual será o formato da curva da recuperação econômica nos diversos casos? Algum país terá um “V”, ou seja, o retorno da economia em pouco tempo à trajetória anterior depois de sofrer uma forte pancada durante a pandemia? Ou em “U”? Talvez um “W”, caso novos surtos de covid-19 apareçam e novas rodadas de restrições à mobilidade sejam estabelecidas?
Provavelmente o sinal de uma raiz quadrada ilustra o cenário mais provável, com alguma recuperação do PIB perdido mas não um retorno à trajetória anterior (veja gráfico abaixo). O surto de demanda previamente reprimida e liberada com o relaxamento de restrições à mobilidade é momentâneo e exaurível. Não se pode compensar jantares em restaurantes ou viagens não ocorridos durante as restrições. Adicionalmente, conforme já observado em todos os países, o medo de aproximação física (fundado) e restrições na ocupação da capacidade de provisão manterão limites à recuperação dos serviços.
O período de colapso na atividade econômica deixará cicatrizes em termos de firmas fechadas e empregos que não voltarão. Muros de restrições fiscais impõem limites à vigência de políticas de achatamento da curva de recessão. Não por acaso quase todas as projeções econômicas sugerem PIBs nacionais ao final do ano que vem ainda abaixo dos níveis do ano passado –com a exceção de China e Índia.
Sucesso na travessia da crise do novo coronavírus será medido pela proximidade –mas não retorno– à trajetória anterior do PIB. A partir daí, a tarefa será lidar com o desemprego estrutural criado pela mudança nos padrões de consumo, os níveis de pobreza aumentados em boa parte do mundo, a concentração de renda, os desafios colocados pela digitalização e a tendência à relativa desglobalização. O cálculo da raiz quadrada vai depender das políticas aplicadas em cada país.
Por Otaviano Canuto, 64 anos, é membro sênior do Policy Center for the New South, membro sênior não-residente do Brookings Institute e diretor do Center for Macroeconomics and Development em Washington. Foi vice-presidente e diretor-executivo no Banco Mundial, diretor-executivo no FMI e vice-presidente no BID. Também foi secretário de assuntos internacionais no ministério da fazenda e professor da USP e da Unicamp