13/09/2020 12:59
”Traumas do passado assombram o Brasil; pandemia pôs o teto de gastos em xeque; despesas de custeio têm que ser revistas; reforma mais urgente é a administrativa” diz Freitas Gomes
O Brasil guarda traumas do passado com a sucessão de planos econômicos desastrosos e mudanças nas correções monetárias, que culminaram no confisco nos anos 1990. O medo do confisco cresce quando há expectativa de crescimento expressivo da dívida pública em reais, o que acarreta fuga de recursos para o dólar.
Esse movimento resulta em mais pressões sobre os preços, aumentando a inflação. O problema atual agravado pela pandemia está, então, não somente no tamanho da dívida, mas no prêmio de risco sobre o real. Daí a preocupação com o cumprimento do teto de gastos que é direta e estritamente relacionado ao crescimento das despesas do governo.
O ano de 2020 está marcado pela crise de saúde e por elevada expansão fiscal em todo o mundo. No Brasil, o aumento do gasto social pelos benefícios emergenciais representa despesas adicionais de pelo menos R$ 45 bilhões mensais. Em breve a dívida pública alcançará 100% do PIB, em que o rápido incremento de despesas e frustração de receitas culminaram no deficit primário de mais de R$ 194 bilhões em junho.
Se antes da crise o país precisava gerar superavits primários para melhorar a trajetória da dívida, o que vinha ocorrendo com o esforço do Ministério da Economia na agenda de reformas e ancoragem de expectativas, agora a complexidade se agigantou.
O teto dos gastos limita o crescimento real de despesas ao nível que elas alcançaram em 2017. Considere que mais de 95% das despesas têm vida própria, ou seja, são configuradas por mecanismos que garantem a obrigatoriedade. A pandemia ampliou o gasto não compulsório, colocando o teto em xeque, e obrigando o governo a ou compensar o incremento de uma despesa com corte em outra, ou rever o próprio teto, o que seria desastroso ao mercado e aos investimentos privados.
Com o enorme desafio fiscal imposto e incertezas quanto ao crescimento econômico no pós pandemia, administrar a dívida mobiliária está mais difícil. Como consequências dos desafios, aumentam os prêmios de risco na curva de juros e a volatilidade cambial com acirramento da depreciação da taxa de câmbio.
Desde o início de agosto, conforme cresceram os rumores quanto ao risco do teto dos gastos, o mercado passou a negociar juros mais elevados para vencimentos longos da dívida, como mostra o gráfico.
O ágio maior nos títulos longos mostra que cresceu o temor quanto a capacidade do Tesouro honrar os compromissos no futuro, ainda que estejamos na rota de recuperação da atividade econômica.
Ao mesmo tempo, nota-se que os juros estão estáveis na curva dos vencimentos de 2021, com baixíssima ou nenhuma variação, diferentemente da oscilação dos vencimentos para 2031, por exemplo.
O Tesouro recentemente concentrou a estratégia de rolagem da dívida mobiliária em vencimentos curtos, aproveitando os juros em níveis historicamente baixos. Mas com o risco quanto ao descumprimento das metas fiscais no futuro próximo, levantou-se que investidores podem rapidamente vender os títulos em busca do dólar, causando mais volatilidade no câmbio. Apesar dos papeis serem denominados em reais, e não em dólar, essa dinâmica seria negativa ao Tesouro, que teria de pagar juros mais elevados também no curto prazo.
Com os vencimentos da dívida até meados de 2021 alcançando mais de R$ 500 bilhões, as necessidades de financiamento cresceram, ao passo que os recursos no caixa do Tesouro estão diminuindo, vide a vultosa transferência de R$ 325 bilhões do Banco Central (BC), aprovada pelo Conselho Monetário Nacional na última semana.
No entanto, existe liquidez no mercado, alcançada com a liberação dos compulsórios e ampliação das captações liquidas na poupança desde o início da pandemia. Por essa razão, inclusive, o mercado está undersold (reservas bancárias livres acima das necessidades de financiamento da dívida).
O Tesouro tem sim espaço, com isso, para aumentar o volume de títulos curtos sem aceitar juros mais altos, pois o dinheiro dorme todas as noites nos bancos. E a recente evolução da curva de juros curtos relativamente estável corrobora o espaço para emissão de dívida curta.
As agências de rating e alguns analistas têm alertado para os limites prudenciais do colchão de liquidez de curto prazo do Tesouro. Cabe lembrar, porém, que teríamos um problema se os papeis fossem denominados em dólar, e que as alternativas encontradas para aliviar temporariamente a dívida curta, como a transferência do BC, tem base em resultado não necessariamente realizável no futuro, o próprio BC já fez essa consideração. A alternativa pode também caracterizar financiamento do BC ao Tesouro, vedado legalmente.
O Tesouro pode receber transferências menores do BC, de forma mais gradual, aceitando a realidade que agora é vender maiores volumes curtos. Não precisa ficar com receio do encurtamento, pois o dinheiro dorme nos bancos e eles não têm alternativa, mas comprar títulos públicos.
Nesse contexto de maiores tensões quanto a gestão da dívida que naturalmente influenciamos prêmios de risco, é premente encarar o desafio fiscal pela ótica correta, que é a menos onerosa ao setor produtivo e à sociedade em geral.
O teto dos gastos é uma regra que limita as despesas, e por mais que haja algum aumento de receitas com crescimento econômico, ou novos ou repaginados arcabouços tributários, elas ajudariam a conter o déficit primário e melhorar o endividamento, mas ainda assim, sem necessariamente revisar as despesas é inviável cumprir o teto. Neste caso, cresce o risco de insolvência.
O corte de despesas do governo, especialmente as de custeio, aliviará o crescimento das despesas totais. Embora a economia esteja gradualmente se recuperando, as receitas devem avançar em menor velocidade, e com a carga tributária já elevada no país, o setor produtivo, especialmente o terciário, não suporta aumento de tributos, que dificultarão ainda mais a recuperação.
As reformas não vão pagar a conta no curto prazo, senão o rigor fiscal. Elas são importantes para melhorar a dinâmica da dívida nos próximos anos, para que possamos criar um ambiente para rever regras como a do próprio teto dos gastos. Mas hoje o mais urgente é uma reforma ágil, que reduza a presença do Estado na economia, contendo o crescimento do gasto e atacando as despesas principalmente com custeio do setor público, uma reforma administrativa.
Cada dia que passa com elevação da dívida e da incerteza quanto ao compromisso fiscal, aumentam os prêmios de risco, fazendo com que caminhemos na direção da insolvência por estupidez. No passado, a hiperinflação demorou mais de 10 anos para virar confisco, agora pode ser bem mais rápido. O passado nos condena!
Por Carlos Thadeu de Freitas Gomes, 72 anos, é economista-chefe da CNC (Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo). Foi presidente do Conselho de Administração do BNDES e diretor do BNDES de 2017 a 2019, diretor do Banco Central (1986-1988) e da Petrobras (1990-1992).