15/09/2020 00:47
Cadeiras vazias no plenário do Câmara onde deputados discutem mudanças na Lei de Improbidade Administrativa: ”Proposta na Câmara altera a lei e torna punição mais difícil”, alerta Livianu
Desde junho de 1992, vigora no Brasil a Lei 8.429, conhecida como Lei de Improbidade Administrativa –o instrumento jurídico mais utilizado pelo Ministério Público para a proteção do patrimônio público, a qual, por ironia do destino, foi sancionada por Fernando Collor, que foi afastado do poder exatamente pela prática de atos de tal natureza.
Dois anos atrás, o deputado Roberto de Lucena (Podemos-SP) apresentou o PL 10.887/18, com o objetivo de atualizar tal norma, que pune agentes públicos e respectivos beneficiários, pela prática de atos de improbidade como enriquecimento ilícito, danos ao patrimônio público e violações a princípios da administração pública com suspensão de direitos políticos, multas, perda de cargo, entre outras sanções.
Após o início da discussão de tal projeto, formou-se comissão especial no âmbito da Câmara dos Deputados, para aprofundamento dos debates referentes a tal proposição, sendo nomeado relator o deputado Carlos Zarattini (PT-SP).
Mas, por conta da pandemia da covid-19, todas as atividades foram impactadas no país e no mundo, inclusive a legislativa, com significativa paralisação dos debates nas comissões, realizando-se algumas poucas audiências públicas virtuais, mas, obviamente a vigência do texto constitucional continua plenamente válida, assim como todos os preceitos inerentes ao processo legislativo bem como as preocupações relacionadas à proteção do patrimônio público e separação dos poderes e princípios constitucionais da legalidade, moralidade e publicidade.
Rascunhos preparatórios, diálogos parlamentares e até mesmo documentos preliminares podem ser imaginados, mas causa perplexidade a notícia da existência de um texto de “substitutivo” já construído e acabado, com começo, meio e fim, relacionado ao mencionado projeto, de autoria do relator, que concretamente tramita de forma obscura e totalmente antidemocrática.
Tanto tramita que circula intensa e clandestinamente, chegando a nosso conhecimento tendo sido já entregue a todos os membros da comissão especial para “prévia conscientização” dos congressitas. E ele propõe um dos maiores retrocessos no combate à corrupção no Brasil nos últimos tempos.
A começar pela proposta de supressão do artigo 11 da Lei 8.429/92. Isto significaria que todas as improbidades sem dano ao patrimônio público ou sem enriquecimento ilícito não mais seriam puníveis. Como o abuso de poder do desembargador Siqueira em Santos, humilhando o guarda civil. Ou qualquer “carteirada” praticada por qualquer juiz ou membro do MP. Ficariam todas impuníveis.
Propõe também a criação da improbidade de menor potencial ofensivo, mesmo com dano ou enriquecimento ilícito, com critérios vagos, o que implicará em impunidade certa de muitos atos de corrupção.
Como se não bastasse, a difícil punição da corrupção se torna mais suave, já que se propõe redução de penas da suspensão de direitos políticos e proibição de contratar com o poder público de 8 para 4 anos e o não afastamento do cargo público caso o agente não esteja mais no cargo no qual praticou a improbidade, como se isso alterasse sua punibilidade.
O “substitutivo” permite a rejeição da inicial após a apresentação da defesa. Ou seja, absolvição antes do devido processo legal, amplia o prazo de defesa para 60 dias, tornando o processo mais moroso e limita a investigação do MP a 1 ano, independentemente da complexidade do caso, sob pena de indenização ao investigado por perdas e danos morais.
É chocante perceber que o tal “substitutivo” que conduz a passadas largas à impunidade a prática dos atos de improbidade não exista do ponto de vista jurídico/formal/político, pois não foi apresentado efetivamente, não se submetendo à apreciação do controle social, razão de ser da própria essência dos princípios apontados da legalidade, moralidade e publicidade no âmbito legislativo, havendo sério risco de estarmos diante de acordo construído nos bastidores, sem que seja possível o debate com a sociedade civil.
O procedimento antidemocrático, clandestino e subreptício de debater o projeto, excluindo a sociedade civil representa grave ato de improbidade administrativa legislativa, de acordo com a lei em vigor.
Sugere possível acordo de bastidor em construção para aprovação relâmpago “de boiada” –algo inadmissível, demandando a criação de regras para imprimir transparência ao sistema de debate e deliberação remota, sempre com a participação imprescindível da sociedade civil.
Por Roberto Livianu, 52, é procurador de Justiça, atuando na área criminal, e doutor em direito pela USP. Idealizou e preside o Instituto Não Aceito Corrupção. Integra a bancada do Linha Direta com a Justiça, da Rádio Bandeirantes, é articulista da Folha de S. Paulo e do Estado de S.Paulo e é colunista da Rádio Justiça, do STF