19/10/2020 13:28
A campanha do presidente Jair Bolsonaro passou a imagem de que há muitas regalias e normas desnecessárias no setor público, como o foro privilegiado, corrupção e regras apenas para controlar e dificultar a vida dos cidadãos, a exemplo dos radares nas estradas e a fiscalização do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Renováveis). Esse é um sentimento que vem crescendo na opinião pública, até porque existem mesmo alguns privilégios, corrupção e excesso de normas na administração pública.
A primeira demonstração política desse sentimento surgiu na campanha de Collor à Presidência, com o discurso de caça aos marajás do setor público. Esse processo ganhou novo impulso nas manifestações de 2013, onde se viu, pela primeira vez, em todo o país, milhões de pessoas nas ruas, reivindicando melhorias nos serviços públicos. Em sequência, o surgimento da Lava Jato e a descoberta de bilionários esquemas de corrupção envolvendo órgãos públicos, empresários, políticos e servidores consolidou esse sentimento na maioria da população.
Escancarou-se o que todos já desconfiavam, mas não tinham provas. O volume de recursos públicos desviados das suas finalidades, em um quadro de fortes carências sociais, chocou a opinião pública.
Infelizmente, esse processo de combate à corrupção não foi entendido pela população como uma etapa necessária para melhorar a aplicação dos recursos públicos e levou à perda de confiança nas instituições públicas e a desqualificação da política.
As lideranças políticas também não foram capazes de perceber a mudança na opinião pública e, portanto, não conseguiram processar essas novas demandas da sociedade. Isso demonstrou à maioria da população o distanciamento da classe política com as suas reivindicações.
Em paralelo, também não foi percebido, por todos aqueles que se aproveitavam da falta de controle, o fortalecimento das instituições como Polícia Federal e Ministério Público após a constituição de 1988 e, algumas alterações legais que facilitaram o combate à impunidade. A atuação e o fortalecimento desses órgãos foi revelando, ao longo do tempo, a relação promíscua de alguns com os recursos do Estado.
Acresce-se ainda que a mídia, ao longo do tempo, também tem contribuído com vistas a promover uma imagem muito ruim da administração pública ao enfocar, às vezes com muito sensacionalismo, as deficiências, sem promover devidamente sua importância na melhoria das condições de vida da população, particularmente no combate à desigualdade.
Vale lembrar o velho ditado: “É preciso jogar a água suja fora da bacia, mas preservar o bebê”. A gestão pública necessita de uma reforma, mas sem os seus serviços, a vida em sociedade seria impossível, como ficou evidenciado no enfrentamento à pandemia do covid-19 pelo SUS.
A consequência desse processo é que o discurso político, hoje hegemônico, está utilizando a irritação da população com as deficiências na prestação de serviços públicos e as denúncias de corrupção no sentido de desqualificar toda a classe política como a grande responsável por essas mazelas. Isso criou um perigoso “caldo de cultura” que favorece a proposição de soluções simplistas e autoritárias para os complexos problemas que desafiam a sociedade brasileira.
Esse fato pode ser comprovado com o florescimento de líderes políticos populistas e salvadores da pátria como foi demonstrado nas eleições de 2018 e, também, com a criação de movimentos políticos que defendem soluções autoritárias, como os fechamentos do Supremo Tribunal Federal e Congresso Nacional e, até um golpe militar.
É hora de todos democratas fazerem uma reflexão sobre o processo político que nos levou a esse radicalismo e a desqualificação da política, conjuntura que não favorece o desenvolvimento do país e a superação dos seus graves problemas sociais.
Todos temos uma parcela de responsabilidade na consolidação dessa narrativa nos corações e mentes da população. Entender esse processo, identificar os erros, formular soluções políticas inovadoras, fortalecer o compromisso com o combate às desigualdades e resgatar a credibilidade da opinião pública nas forças políticas democráticas é o desafio histórico, urgente, que temos pela frente.
Liderar as reformas do estado pode ser um bom começo.
Por Ricardo de Oliveira, 63 anos, é engenheiro de produção pela UFRJ. Ex-vice-presidente do Conselho Nacional dos Secretários Estaduais de Saúde (Conass), foi secretário de Gestão e Recursos Humanos do Espírito Santo(2005-2010) e secretário de Saúde do Espírito Santo (2015-2018). É autor do livro “Gestão pública: democracia e eficiência”, publicado pela Editora FGV.