19/10/2020 13:34
O Supremo é um tribunal político. Não no sentido estrito do termo. A ele cabe gerir o equilíbrio entre os poderes, por meio da observância dos procedimentos institucionais, e lidar com as autoridades do mais alto escalão da República. Entre os misteres da Corte, destacam-se: a competência para declarar a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de atos normativos; o julgamento do presidente da República e dos membros do Congresso Nacional; a atribuição de presidir o julgamento dos crimes de responsabilidade das maiores autoridades do País; além da responsabilidade que recai ao seu Presidente em exercício, de assumir a chefia do Poder Executivo, em caso vacância do representante da Câmara e do Senado Federal.
A natureza jurídico-política do STF está impregnada na Constituição Federal. Como “guardião” dela (CF, art. 102, caput), suas decisões, inexoravelmente, carregam viés político. Isso porque as normas constitucionais são fruto de um movimento histórico denominado poder constituinte, caracterizado por ser inicial (pois inaugura uma nova ordem jurídica), autônomo (não se subordina a nenhum outro) e incondicionado (não se sujeita a qualquer condição ou fórmulas jurídicas prévias). Nesse cenário, a Carta Política de 1988 regula a estrutura institucional do Estado, estabelece os direitos e garantias fundamentais com o fim de preservar a autonomia e liberdade do indivíduo, estatui normas jurídicas para proteger os direitos difusos e coletivos, dentre outras regulações de fundamental importância para a sociedade.
Não se pode negar, portanto, dada a amplitude de direitos fundamentais que o constitucionalismo alberga – na maioria das vezes, por meio de princípios jurídicos –, a possibilidade de os assuntos constitucionais serem severamente controversos no âmbito da Corte Maior. Assim, em virtude da abertura pragmática que o texto da Carta Magna proporciona ao intérprete, muitas vezes o STF é instado a – diante da demora ou ausência de manifestação do Poder Legislativo – dar solução a problemas que surgem no seio da sociedade e que não têm resposta imediata no arcabouço jurídico pátrio.
E a pedra angular dessas demandas, a direcionar tanto a pretensão quanto as decisões da Corte Suprema, é justamente a abertura permitida pelas normas jurídicas de natureza principiológica. Não há, dessa forma, como afastar o caráter eminentemente político das interpretações dadas pelo STF, muito embora isso não sirva de autorização para que se decida de forma contrária ao texto constitucional.
Por esse motivo, as nomeações de membros da Corte Suprema, sobretudo mais recentemente, têm causado grande repercussão na sociedade brasileira. Exemplo claro é a primeira indicação ao STF feita pelo presidente Jair Bolsonaro, que, no dia 02 de outubro formalizou o nome do Desembargador Kassio Marques, do Tribunal Regional Federal da 1ª região, para ocupar a vaga do decano Celso de Mello, que se aposentará no dia 13 deste mês.
A notícia alardeou a imprensa nacional. Portais e sites jornalísticos alinhados à esquerda reclamavam que o indicado já se manifestara contrário ao aborto, que era favorável ao desmatamento etc. Outros, supostamente conservadores e simpáticos à extrema-direita, vociferavam que o Desembargador era contrário à prisão em segunda instância e havia liberado lagostas para os ministros do Supremo Tribunal Federal. Houve até aqueles que anunciaram, em tom pejorativo, uma tendência do indicado em respeitar as escolhas feitas pelos legisladores…
Mas causa maior espanto a projeção dada a um encontro entre o presidente Jair Bolsonaro, Kassio Marques e os ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli.
Há tempos, o presidente da República vinha sofrendo críticas severas por seu comportamento nada institucional. O Executivo vivia em constante conflito com os demais Poderes. Toffoli, no exercício da Presidência da Suprema Corte, sempre agia para arrefecer os ânimos, diminuindo a tensão institucional. Após muitos entraves e guerra de versões, Bolsonaro passou a se relacionar melhor com as demais autoridades, sobretudo nos edificantes diálogos que manteve com os ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli.
Decorrente dessa aproximação, aconteceu o encontro, promovido por Bolsonaro, entre Kassio Marques e aqueles ministros do Supremo, apenas para dizer-lhes que o indicaria para a vaga do ministro Celso de Mello. A reunião, pelo que se vê, foi totalmente normal. E salutar, haja vista que fruto da abertura institucional ao diálogo, sem qualquer interesse. Apenas para lembrar, Gilmar Mendes, nas discussões havidas na Corte sobre a epidemia, sempre se manifestou de forma contrária ao governo. Nunca deixou de expressar os seus votos de forma independente e com suporte único na Constituição Federal. Em tese, o presidente não deveria ter qualquer vontade de se relacionar com o ministro; mas, de fato, ele se mostra outro, disposto a ouvir e discutir as questões da República.
A propósito, já fiz, nesta coluna, diversas críticas às críticas sobre nomeações presidenciais para cargos jurídicos importantes. Lembro do alvoroço iniciado um ano atrás, quando Aras (que não figurava na famigerada lista da ANPR) foi escolhido para procurador-geral, com direito a uma nota pública de “piti” da citada Associação dos Procuradores, contra a quebra de um suposto costume constitucional. Foi dito até que a PGR se tornaria num balcão de negócios. Concluí: se a suposta vinculação à lista tríplice não existe na Lei Maior brasileira, só pode estar na Constituição da República de Curitiba.
A previsão de que o novo chefe do Ministério Público seria um “Engavetador-Geral da República”, creem alguns, parece ter se confirmado quando ele se levantou contra o poder paralelo, gigantesco e punitivista da Lava Jato. Em contrapartida, não há como dizer que ele foi clemente ao tratar de casos de políticos importantes como Wilson Witzel e Helder Barbalho. A questão é clara: Ministério Público é defensor da ordem jurídica, dos interesses difusos e coletivos; não está escrito em lugar algum que seus membros devam se portar como carrascos. Seu dever de denunciar, quando vislumbra indícios de prática criminosa, não é maior do que o de pedir arquivamento ou absolvição, em casos inversos.
Aqueles que cumprem os preceitos estabelecidos na Carta Magna, embora achincalhados por parte da imprensa no momento em que proferem decisões garantistas, deixam grande legado para a comunidade jurídica e o regular funcionamento da República. Os que se desvirtuam de seu múnus constitucional, voltando suas atenções e decisões ao “clamor social”, à “voz das ruas” e aos interesses obtusos de parcela da mídia que sempre pauta suas vontades em busca de audiência rasa e barata, tendem a ocupar lugar de destaque no ostracismo. Suas produções intelectuais e jurídicas não são sequer utilizadas como esteio retórico pelo mais raso rábula.
Paciência, futuro ministro Kássio. Lombo grosso, espinha ereta e lucidez para suportar a pressão vampiresca dos néscios. Cordialidade e relacionamento gentil não significam docilidade, ao contrário. Ser emburrado costuma corresponder ao seu próprio domínio intelectual. E como dizia meu pai: “Todo mundo que fica perto de um burro corre sério risco de tomar um coice”. Zele pela harmonia; educação não é pusilanimidade.
Por Demóstenes Torres, 59 anos, é ex-presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, procurador de Justiça aposentado e advogado.